A concentração do sistema agroalimentar global e os desafios do Brasil

14 de março de 2018 1050

Na lista das 500 maiores empresas do mundo por volume de negócios da Fortune, 45 estão nos ramos de agronegócio, indústria de alimentos ou varejo. Ao mesmo tempo, a agricultura é a base da subsistência de um número enorme de pessoas que estão entre as mais pobres do mundo. Estatísticas internacionais estimam cerca de 570 milhões de estabelecimentos agrícolas com 3,41 bilhões de pessoas vivendo no rural, onde está concentrado mais de 80% da pobreza. Esse punhado de corporações globais organiza a agricultura e os padrões de consumo de alimentos em escala mundial. E a tendência dominante é a crescente concentração do sistema agroalimentar global, com um poder de controle cada vez maior das multinacionais sobre a inovação tecnológica e os fluxos materiais e financeiros do setor.

Nem mesmo o mais panglossiano economista liberal ou agrônomo, burocrata ou homem de negócios, deve acreditar sinceramente que os impactos disso na sustentabilidade ambiental e energética, na segurança alimentar, na saúde humana e na justiça social e distributiva serão os mais alvissareiros. Na feliz expressão do relatório Too Big to Feed, do International Panel of Experts on Sustainable Food Systems, “os gigantes agroalimentares podem não ser ‘grandes demais para falirem’ (too big to fail), mas estão se tornando grandes demais para alimentar a humanidade de forma sustentável, para operar em termos equitativos com outros atores do sistema, e para entregar os tipos de inovação que precisamos”.

Da perspectiva dos produtores rurais (“dentro da porteira”), a organização do sistema agroalimentar pode ser dividida entre atividades a montante (“antes da porteira”) e à jusante (“depois da porteira”). As firmas à montante fornecem ao agricultor máquinas e equipamentos agrícolas, sementes, fertilizantes e agrotóxicos, genética, rações e produtos veterinários. As firmas à jusante atuam no beneficiamento, processamento e transformação do produto primário, no comércio atacadista e varejista e nos serviços de criação e marketing de novos produtos visando o consumidor final.

Diferente da visão tradicional dos livros-texto de teoria econômica, que descrevem a agricultura como um setor isolado com produtores difusos e mercados de “concorrência perfeita”, na prática a agricultura é cada vez mais integrada intersetorialmente, tanto do ponto de vista tecnológico como financeiro. As escalas de produção e os tipos de agricultores são muito heterogêneos: grandes fazendas capitalistas com trabalho assalariado, pequenos e médios estabelecimentos com trabalho familiar, ambos direcionados aos mercados, ou agricultores “camponeses”, mais orientados à subsistência. E as empresas e indústrias, embora também possam variar muito em tamanho, em geral atuam em estruturas “oligopolistas”, em que poucos concorrentes controlam os mercados.

O principal mecanismo de concentração dos mercados atualmente são as operações de fusões e aquisições, motivadas por fatores como a busca de maximização do “valor dos acionistas”, o aumento ou proteção das fatias de mercado e sua expansão geográfica, a aquisição de novas tecnologias e patentes e o controle de recursos naturais e cadeias de suprimentos.

Nos ramos à montante, três empresas controlam mais de 70% do mercado de agroquímicos e mais de 60% do mercado de sementes híbridas e transgênicas em todo o mundo. Isto é fruto da fusão entre as gigantes americanas Dow e DuPont, que, para atender exigências das autoridades brasileiras, vendeu parte da Dow sementes de milho para a chinesa CITIC Agri Fund, da aquisição da americana Monsanto pela alemã Bayer, e da compra da suíça Syngenta pela ChemChina. Esta última, em 2011, também adquiriu a israelense Adama, com duas fábricas no Brasil. Em 2017, através da própria Syngenta, a ChemChina também adquiriu a Nidera Seeds da trader chinesa COFCO, e agora, em 2018, deve entrar em fusão com a Sinochem, também da China.

O peso do capital financeiro fica explícito no ramo de insumos. Para ficar apenas em um exemplo: uma única firma gestora de ativos, a Black Rock, controla 15,85% da Bayer-Monsanto, 12,72% da Dow-Dupont, 6% da Syngenta (pertencente à estatal ChemChina) e 8,3% da BASF (que, por enquanto, segue voo solo).

Na indústria de fertilizantes, apesar de uma infinidade de marcas comerciais, as dez maiores empresas representam 56% do mercado, sendo as maiores a Agrium-Potach, resultado da fusão entre as duas canadenses, e outras grandes como a norueguesa Yara e a norteamericana Mosaic.

Na indústria de máquinas agrícolas, quatro corporações controlam mais de 54% do mercado: a estadunidense John Deere, a holandesa CNH, a japonesa Kubota e a também americana AGCO.

E nos ramos à montante? Com a importância decisiva da demanda, devido às mudanças nos hábitos alimentares e dietas de classe decorrentes do aumento da renda e da urbanização acompanhando o crescimento da classe média, a redução da pobreza e a incorporação dos trabalhadores nos países em desenvolvimento aos mercados de consumo, os supermercados se tornaram a instituição hegemônica do sistema agroalimentar. As dez maiores firmas varejistas dominam 30% das vendas mundiais, lideradas pelo Walmart.

Na indústria de alimentos e bebidas, estima-se que entre as 100 maiores empresas, as top 10 representem 37,5% da participação de mercado. As maiores das bebidas são a belgo-brasileira Amheuser-Imbev e as americanas Pepsico e Coca Cola. A suíça Nestlé e a americana Mondelez dominam nos laticínios e ultraprocessados. E nas carnes o destaque vai para as brasileiras JBS (1°), BRF (5°) e Marfrig (9°), as norteamericanas Tyson (2°) e Cargill (3°) e a chinesa WH Group (4°), que adquiriu a americana Smithfields e tornou-se a maior na carne suína.

No rescaldo dos escândalos das empresas brasileiras de proteína animal foi anunciado o interesse da Tyson em comprar as participações dos fundos de pensão Previ, Petros, Standard Aberdeen e Tarpon na BRF, numa operação que lhe daria 33% da companhia e marcaria seu retorno ao mercado brasileiro.

Outro ramo fundamental é aquele das “traders” agrícolas. “Traders” são firmas que compram e vendem grãos e outras commodities e empreendem diversas atividades: originação, produção e processamento, logística, transporte e distribuição (alimentos, ração, fibras e biocombustíveis) e, cada vez mais, transações financeiras, em escala global. Este ramo tem sido tradicionalmente dominado por quatro grandes firmas coletivamente conhecidas como ABCD: as americanas ADM, Bunge e Cargill e a francesa (Louis) Dreyfus, que chegaram a representar até 90% do comércio global de grãos.

Mais recentemente este mercado tem sido contestado com a entrada de novos jogadores, principalmente firmas asiáticas. Entre elas, a Noble Agri de Hong Kong, a Olam e a Wilmar de Singapura, conhecidas como NOW, a russa Sodrijestvo e as japonesas que entraram firme em fusões e aquisições (Itochu-Naturalle, Marubeni-Gavillon, Mitsui-Multigrain). Sem falar da maior empresa nacional do ramo, a Ammagi, do atual ministro da agricultura de Temer, Blairo Maggi, e da ECTP, montada por Ricardo Lehman a partir dos negócios agrícolas com papéis do banco BTG Pactual.

Contudo, como já discutimos em outro artigo nesta coluna, é a gigante estatal chinesa COFCO que está mesmo reestruturando o mercado, após a aquisição da holandesa Nidera e da referida Noble Agri. Já nem se fala mais nas quatro grandes ABCD, senão nas cinco grandes ABCCD, sendo o segundo C da COFCO. É razoável pensar que a entrada da COFCO e das demais tradings asiáticas, ao comprimir as margens de lucro e acirrar a concorrência no mercado de commodities agrícolas no Brasil, é uma das principais razões por trás dos avanços da ADM visando à aquisição da Bunge, que, se for confirmada, marcará a formação do maior império das commodities jamais visto.

O problema é que estes processos de concentração do sistema agroalimentar, recrudescidos pela atual onda de mega-fusões, embora respondam aos imperativos do lucro, da acumulação e da competitividade das corporações, podem trazer um conjunto de impactos negativos para o conjunto da sociedade, conforme discute o relatório Too Big to Feed. Entre eles, destacam-se:

a redistribuição dos custos e benefícios ao longo da cadeia em favor das empresas de insumos em detrimento da renda dos agricultores, que veem os custos dos insumos aumentarem em uma proporção maior do que os preços dos seus produtos, cuja tendência é de queda secular (e quando sobem demais geram crises alimentares que acentuam a incidência da fome, como em 2008 e 2011); a perda de autonomia dos agricultores, que ficam cada vez mais na mão de um punhado de firmas oligopólicas capazes de impor padrões e requerimentos que restringem o seu espaço de manobra para tomada de decisão sobre o que, quanto e como produzir, para quem vender e sob que condições; a redução do alcance e desincentivo da inovação, através de atividades de pesquisa e desenvolvimento (P&D) defensivas que bloqueiam rotinas em torno dos produtos e tecnologias que têm garantido os lucros privados em face da competição e da regulação existentes ao invés de introduzir novas soluções que poderiam ser mais benéficas ao publico (pense no elevado grau de contaminação ambiental advindo do uso excessivo de glifosato associado ao uso de sementes transgênicas ou os problemas nutricionais ligados ao uso excessivo de sal, açúcar e gordura em alimentos ultraprocessados); o esvaziamento dos compromissos corporativos para a sustentabilidade, que muitas vezes torna-se apenas um discurso vazio ou uma estratégia de marketing sem conteúdo ou impacto real; o controle das informações dos usuários de tecnologias da informação através da revolução baseada em dados (principalmente Big Data e Analytics) que pode se concentrar nos grandes produtores e excluir ainda mais os pequenos (de quem são os dados fornecidos pelo produtor? como serão usados?), manipular os padrões de consumo dos consumidores e subsumir o surgimento de start-ups originais a processos de capitalização e tomada pelas grandes corporações com grande poderio financeiro; a escalada dos riscos ambientais (erosão da diversidade genética e da variedade de cultivos, sementes e raças de animais) e de saúde pública (aumento da incidência de obesidade e doenças crônicas não comunicáveis relacionadas à má nutrição), os abusos laborais (trabalho degradante, mal remunerado, descaso com direitos) e as fraudes (contaminações, adulterações e escândalos de segurança dos alimentos); e a definição dos termos do debate e a moldagem das políticas públicas e das práticas de negócio, por exemplo, através de lobby, corrupção e subornos, de acordo com os interesses das grandes empresas e de forma contrária ao interesse público.

Parafraseando Karl Polanyi, permitir que a comida seja uma mercadoria como outra qualquer e deixar o destino da agricultura, da vida e da saúde das pessoas e do ambiente por conta da ficção do mercado “livre”, na verdade tão concentrado e governado por umas poucas firmas que mais lembram impérios agroalimentares, seria o mesmo que aniquilá-los, resultando no desmoronamento dos valores humanos sobre os quais a civilização foi edificada em troca de valores monetários.

Mas como essa problemática poderia ser abordada por meio de olhares diferentes, no intuito de apoiar a construção de sistemas agroalimentares mais justos, saudáveis e sustentáveis? Obviamente não temos respostas gerais para uma questão tão complexa, mas uma breve reflexão desde a realidade brasileira pode ser um começo.

Nas últimas décadas, o debate tem sido dominado por duas posições ideológicas polarmente opostas: de um lado, agricultura patronal ou capitalista de larga escala associada à promoção dos agronegócios e das exportações de commodities; de outro, agricultura familiar, reforma agrária e povos indígenas e tradicionais associados ao desenvolvimento rural. Ambos não deixaram de endereçar a segurança alimentar, seja através do mercado, seja como direito social. Chegou a hora de superar este maniqueísmo ideológico e buscar um diálogo mais generoso e realista sobre o lugar da agricultura, da alimentação e do rural num projeto maior de desenvolvimento do país. Deste modo, valeria questionar dois slogans de propaganda política por aí difundidos. A agricultura familiar de fato produz 70% dos alimentos consumidos pelos brasileiros? O agro é tech, o agro é pop, o agro é tudo mesmo?

Rodolfo Hoffman, um dos maiores especialistas em estatística econômica e métodos quantitativos do país, demonstrou que essa afirmação repetida de forma acrítica por autoridades e militantes não é factual. Com base nos dados do último Censo Agropecuário de 2006, ele estimou que agricultura familiar produz 83% da mandioca, 70% do feijão, 33% do arroz em casca, 14% da soja, 30% dos bovinos, 51% das aves e 60% dos suínos. Em termos de valor de produção, a agricultura familiar contribui com 33,2% do total e a agricultura “não familiar” com 66,8%. E com base nos dados da Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) 2008-2009, estimou que o valor da produção da agricultura familiar no total das despesas com alimentação das famílias do país é no máximo de 25%. Isto não significa, contudo, que a agricultura não-familiar contribua com os 75% restantes. As famílias não compram apenas produtos in natura direto do produtor, mas em uma série de produtos processados (pela indústria, que usa produtos da agricultura familiar e não familiar como matéria prima) vendidos em diferentes canais de comercialização, principalmente os supermercados. Assim, a ideia de que a agricultura familiar supre o mercado doméstico de alimentos enquanto o agronegócio exporta commodities para o mercado externo é uma meia verdade. A agricultura familiar também está inserida em complexos agroindustriais (carnes de frango e porco, por exemplo) em que parte da produção é exportada e a agricultura patronal igualmente abastece boa parte dos alimentos do mercado interno (café e laranja, por exemplo).

John Wilkinson e Ruth Rama, dois dos maiores especialistas mundiais em temas agroalimentares, em uma Nota Técnica ainda não publicada, destacam que a agropecuária brasileira tem adotado inovações tecnológicas de ponta e alcançado níveis de produtividade altíssimos. O agronegócio brasileiro tem sido capaz de responder por cerca de 23% do PIB e 50% das exportações do país, sendo líder mundial em soja, açúcar, café, suco de laranja e carne vermelha, segundo em aves e quarto em suínos, assim contribuindo para a sustentação da nossa balança comercial. No entanto, essas exportações são quase exclusivamente de commodities não ou apenas semiprocessadas. E a dinâmica do setor de fabricação de alimentos processados, medida em evolução do pessoal ocupado, tem ficado abaixo da média do setor manufatureiro, além de ser pouco inovativa, embora haja exceções. Quer dizer, temos uma agricultura competitiva por conta das vantagens em recursos naturais e da inovatividade dos produtores, mas nossa economia em geral e o setor agroindustrial em particular estão no caminho de especialização primária e da desindustrialização precoce. Assim, se é verdade que o agronegócio possui uma face de modernidade e progresso, também tem outra face marcada pelo atraso e o conservadorismo (bancada ruralista, assassinatos de líderes indígenas e sindicais, contaminação do ambiente e da saúde, trabalho análogo à escravidão, etc.).

Portanto, é premente que a sociedade e o Estado, através das políticas públicas, possam promover um agronegócio não só produtivo, mas que passe pelo crivo da regulação social, pague impostos (evasões do ITR e isenções da Lei Kandir) e respeite o ambiente e os direitos dos trabalhadores; bem como uma agricultura familiar diversificada e ativa na construção redes alimentares alternativas, sistemas de cooperação e novos mercados capazes de circunverter o controle corporativo e distribuir alimentos, saúde, sustentabilidade e justiça social.

Este debate terá um excelente espaço para avançar na III Conferência Internacional Agricultura e Alimentos em uma Sociedade Urbanizada (AGRIURB), que acontecerá no segundo semestre de 2018 na cidade de Porto Alegre (Brasil), organizado pelo GEPAD e outras instituições vinculadas a Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

(*) Pesquisador do GEPAD. Pós-doutorando na UFRRJ. As opiniões emitidas nesta coluna são de responsabilidade individual do autor. E-mail: escher_fab@hotmail.com

 

 

 

(Foto: Agência Brasil)