A crise política e o desânimo do povo com seus representantes

27 de outubro de 2017 485

“Cada dia eu acredito menos na política. Eu fico com dor no coração, acho que a gente tinha que acreditar. Mas eu já perdi as esperanças, ultimamente nem programa de política eu assisto”. A fala de Maria Aparecida dos Santos é a de muitos brasileiros. Ela tem 59 anos e diz ter desacreditado na política brasileira ainda na adolescência. Decidiu, porém, anular seus votos há apenas quatro eleições.

Negra e moradora de Bauru, no interior de São Paulo, a cozinheira diz que nem mesmo as mulheres atualmente no congresso parecem representá-la, quando questionada sobre a maioria masculina nos espaços de poder. “As mulheres que eu acompanhei falaram que iam fazer muito e eu não vi nada”, critica. Segundo Aparecida, sua família segue o mesmo pensamento.

O número de abstenções, votos nulos e brancos têm crescido nos últimos anos. Do eleitorado brasileiro, 32,5% não foi votar, preferiu o branco ou o nulo em 2016. São seis pontos percentuais a mais em relação às eleições de 2012.

 

A manauara Larissa Almeida, de 20 anos, endossa essa estatística. A jovem comenta que não foi acostumada pela família a discutir sobre o assunto e se sente distante do debate político. “Não adianta só votar ou não, é preciso entender todo um contexto. No meio de tanta crise política, me senti perdida”, explica a estudante de Relações Públicas.  Ela anulou seu voto nas últimas duas oportunidades: em 2016 e neste ano, durante a eleição para governador-tampão do estado de Amazonas.

A população do estado foi convocada às urnas no último mês de agosto, após a cassação de José Melo (Pros) e Henrique Oliveira (Solidariedade), eleitos em 2016. Em decisão do Tribunal Regional Eleitoral do Amazonas, confirmada pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE), a chapa foi afastada pelo crime de compra de votos, cometido durante a campanha de 2014.

Na eleição que escolheu seus substitutos, eleitores que deixaram de escolher um candidato, optando por branco ou nulo, somados às abstenções, ultrapassaram a marca de um milhão de votos. O número representa um aumento em relação ao primeiro turno (849 mil) e é superior ao eleitorado de Amazonino Mendes (PDT), candidato eleito com mais de 780 mil votos.

Fenômeno semelhante ocorreu nas últimas eleições de capitais brasileiras. No Rio de Janeiro, o prefeito Marcelo Crivella (PRB) teve um número de votos correspondentes à metade do número de abstenções, votos nulos e brancos. Em São Paulo, o atual prefeito João Dória (PSDB) não foi escolhido pela maioria absoluta do eleitorado. Dos quase 9 milhões de cidadãos que podem votar, apenas cerca de 3 milhões escolheram o atual prefeito.

Na capital paulista, o número de votos brancos e nulos na última eleição municipal só não superou o das duas primeiras eleições depois dos 21 anos de ditadura militar. Os votos brancos e nulos aumentaram 22% em relação às últimas eleições municipais.

Dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) mostram que, na penúltima vez em que os paulistanos foram às urnas escolher vereadores e prefeito, 26,5% se abstiveram ou votaram em branco ou nulo. Em 2016, esse número subiu para 32,5%, o que representa um terço do eleitorado da cidade.

Crise na democracia?

Para Giovanni Alves, doutor em Ciências Sociais pela Unicamp, o voto obrigatório brasileiro maquiou uma crise no sistema político que não é recente. “Os índices de abstenções nos Estados Unidos, Japão e países da Europa mostram que a maior parte da juventude já não acredita nesse sistema”.

O pesquisador reitera que o paradigma hoje não é em relação à democracia, e sim em relação à política. “O problema está essencialmente no nosso sistema político que não está conseguindo representar os interesses do povo”, afirma.

O desenvolvimento do neoliberalismo, impulsionado especialmente nos anos de 1990 no Brasil, é apontado pelo especialista como grande motivador dessa crise, que não foi solucionada por partidos mais alinhados à esquerda nos cargos de presidência.

“A incapacidade dos governos Lula e Dilma de romper com esse sistema político decorrem da própria dificuldade de se fazer uma reforma política no país. O que a Operação Lava Jato está mostrando? Um deputado que está hoje no congresso não representa os interesses de quem os elegeu, mas das grandes empresas que investiram muito nele”.

Face do político brasileiro

Para compreender a questão da autenticidade da representação política no Brasil, é necessário olhar também para a composição do Congresso Nacional. Na edição de 2016 do levantamento do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (DIAP), intitulada “Os Cabeças do Congresso”, foram apurados os 100 parlamentares mais influentes do Poder Legislativo Federal.

No levantamento, pode-se identificar que 45 desses políticos são profissionais liberais. Destacam-se também 17 empresários, que incluem produtores rurais ou donos de indústrias. Apenas seis parlamentares são considerados representantes do operariado: quatro metalúrgicos e dois técnicos.

O que se nota é que o grupo não compõe apenas a “elite parlamentar”, a maioria dele faz parte da classe rica do país. Entre as pautas mais atuais do Congresso, muitas são do interesse do empresariado: as reformas trabalhista, tributária e da previdência, propostas de incentivos fiscais e de crédito e a regulamentação da terceirização.

Nos quesitos de gênero e etnia, o deputado brasileiro tem um perfil: em sua maioria, é homem e é branco. Conforme análise de dados oficiais da Câmara dos Deputados, 458 dos deputados federais são homens, enquanto apenas 55 são mulheres, número que corresponde a 10,72% dos 513 parlamentares que compõem a Câmara.

Na eleição de 2014, foi identificado que 410 dos deputados eleitos se declaram brancos, enquanto 81 e 22 se declaram, respectivamente, pardos e pretos, equivalente a apenas 20,08% do total. De acordo com o Censo Demográfico de 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), na questão de gênero as mulheres representam 51% da população; no quesito étnico, os pretos e pardos representam 50,7% do total de brasileiros.

Apesar da aparente disparidade entre os perfis da população brasileira e seus representantes políticos, Glauco Peres da Silva, professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP) acredita que a ideia de crise na representatividade política é algo a ser discutido. Ele concorda que é necessário haver políticas públicas que abranjam toda a população, mas não vê a falta de representatividade como fator limitante dessa possibilidade.

Sobre esse contexto, ele faz algumas considerações: “A primeira é o pressuposto de que os representantes precisem refletir as características da população. Isto é um entendimento passível de discussão. O segundo é o fato de que não há essa correspondência. Ela reflete a maneira como a elite política brasileira foi formada historicamente”.

A resposta das reformas.

“O cidadão não confia mais nas urnas. Não é à toa que o brasileiro vem deixando de acreditar na nossa democracia”, diz o relatório de Vicente Cândido (PT-SP), deputado responsável pelo parecer da reforma política.

É uma pauta que se arrasta desde a promulgação da Constituição de 88. Na avaliação de Maria do Socorro Sousa Braga, coordenadora do Núcleo de Estudo dos Partidos Políticos Latino-americanos da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), nunca foi possível fazer uma reforma substantiva nas regras políticas apesar de ser tema recorrente em todas as legislaturas.

“É preciso uma autocrítica dos políticos, para que eles se mostrem flexíveis ao que a população quer”, recomenda Braga. “Só assim vamos conseguir trazer a população de volta à participação política”.

A pesquisadora afirma não ser possível esperar o fim dos problemas do país por uma reforma política, que nasce das demandas dos políticos. A questão tem origem em outro lugar. “Claro que há distorções no sistema político, mas o que precisamos primeiro é estabelecer limites para os legisladores, criar mecanismos de punição para o poder político e econômico”, explica.

Os "não-políticos"

Todo o contexto narrado criou um ambiente que permitiu o surgimento de um grupo de políticos distanciados da política tradicional. “Tenho 45 anos de experiência, sendo a maior parte deste tempo como empreendedor e como gestor”, se apresentou o estreante João Dória, do PSDB, em sua proposta de governo à prefeitura de São Paulo, durante as eleições de 2016. Ele é um dos exemplos de candidatos lançados como outsiders, vindos de fora de grupos hegemônicos da política tradicional.

Embora os “não-políticos” pareçam uma tendência, Josemar Machado de Oliveira, professor e historiador, comenta que a oposição à categoria política não é algo novo. “Há décadas candidatos se apresentam desta forma, questionando os ‘políticos profissionais’ e dando a entender que são um poço de pureza e que não estão fazendo política, vista por eles como algo ruim”, explica o docente da Universidade Federal do Espírito Santo.

Suas propostas não são homogêneas. O estreante Donald Trump foi eleito nos Estados Unidos exaltando o protecionismo econômico como solução ao desemprego. O  presidente francês Emmanuel Macron, do partido “A República em Marcha”, é aberto ao comércio externo e um dos principais líderes defensores da União Europeia.

No Brasil, além de Dória, capitais como Rio de Janeiro e Belo Horizonte elegeram candidatos com discurso “não político” sendo eles, respectivamente, Marcelo Crivella (PRB) e Alexandre Kalil (PHS). O fenômeno chegou em cidades do interior, com a vitória de Daniel Guerra (PRB) em Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul.

Entre as semelhanças estão a afinidade com o empresariado, propostas de ampliação de Parcerias Público-Privadas (PPP), plano de carreira meritocrático para os membros do governo e descentralização dos serviços públicos.

Aldo Fornazieri, professor da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, acredita que a questão é complexa: as diferenças entre gestão privada e pública não garantem o bom desempenho de alguém consagrado no mercado. “Na empresa, lida-se com recursos certos, projetos definidos e demandas controladas. Já na esfera pública, você enfrenta sempre escassez de recursos, demandas crescentes e múltiplos conflitos, de difícil mediação”, compara o docente.

Para Josemar Machado, a chance de perpetuação dessa estratégia política é baixa. “Candidatos como Trump trabalham com a mistificação política e, como uma de suas características, a fantasia do curto prazo”, opina o historiador.