A geração que nasceu na Feira dos Agricultores Ecologistas e fez da agroecologia um modo de vida
A Feira dos Agricultores Ecologistas (FAE) está perto de completar 30 anos de vida. Instalada desde 1989 na rua José Bonifácio, tradicional rua que abriga o Brique da Redenção, em Porto Alegre, a feira consolidou-se como um espaço de comercialização de alimentos livres de agrotóxicos. Mas não só isso. Ela se tornou também um ponto de encontro e de convergência de pessoas, grupos sociais e entidades interessadas em agroecologia, agricultura familiar, gastronomia e defesa do meio ambiente. A feira tem uma história que já está perto de entrar em sua terceira geração. Quem vai à feira hoje, encontrará jovens produtores e produtoras que freqüentam as suas bancas desde bebês.
É o caso, por exemplo, de Franciele Menoncin Bellé, que começou a participar da ainda na barriga da mãe, Aldaci Menoncin Bellé. Depois que nasceu, a partir dos seis meses de idade, ele passou a ir à feira quase todos os sábados. “Fui criada dormindo embaixo da banca ou sentada em cima da banca quando ela estava sendo montada. As pessoas passavam e perguntavam brincando: Quanto é que custa essa mercadoria? Quero levar. Várias outras meninas também têm a mesma história”, lembra. Filha única, desde muito pequena, acompanhou seus pais para todos os lugares onde eles iam. Franciele Bellé faz parte de uma geração que praticamente nasceu dentro da feira e que decidiu seguir o trabalho dos pais, escolhendo a agroecologia não só como modo de produção, mas também como modo de vida.
As memórias que Franciele tem de sua infância na feira, na companhia de seu pai e sua mãe, indicam o papel que a agroecologia viria a ter em sua vida:
“Quando a gente ia colher frutas para mim era um momento muito mágico. Eu adorava comer aquelas frutas e isso gerou dentro de mim uma sensação e uma lembrança boa. A gente não lembra dos fatos, muitas vezes, mas lembra do sentimento e existem sentimentos bons e ruins. São esses sentimentos que, no futuro, vão nos guiar. Eu acredito que esses sentimentos bons que eu tinha quando íamos colher frutas ou participar de feiras fazem com que eu me sinta em casa quando estou na FAE. Eu me sinto muito melhor lá do que na minha própria casa. Essa é a razão pela qual a gente resiste. Às vezes é muito difícil e dá vontade de desistir. É esse sentimento que tenho dentro de mim que me motiva a continuar”.
Essa relação familiar com a agroecologia é antiga. A família do pai de Franciele, Nelio Roberto Bellé, enfrentou problemas de saúde relacionados à participação do avô na Segunda Guerra Mundial. Esses problemas deram origem a uma busca que acabaria por desembocar na agroecologia. “O meu pai, em busca de um tratamento, conheceu a macrobiótica e a Colmeia em Porto Alegre. Na época, estavam começando a falar de agroecologia e de produção orgânica. Ele achou uma coisa muito interessante e trouxe aqui para Antonio Prado. Em 1988 foi criada a cooperativa Aecia que participou da primeira feira criada pela Colmeia”.
Nesta época, relata ainda Franciele, seu pai também levou para Antonio Prado uma loja de produtos naturais e, junto com seus irmãos, começou a plantar produtos agroecológicos. “A loja era muito pequena e ela não vingou. Aqui em Antonio Prado até hoje as pessoas não aceitam muito produto agroecológico. Neste período a gente morava na cidade e acabamos voltando para o interior onde começamos uma agroindústria. Minha mãe começou a fazer sucos, molhos, conservas e compotas. A agroindústria acabou se sobressaindo muito mais do que a loja. Sempre procuramos criar um produto diferenciado, o que permanece até hoje. Na feira, hoje, entre produtos industrializados e in natura, são comercializados perto de 400 produtos”.
“A gente tem uma qualidade de vida muito melhor aqui”
A história de Maiara Marcon também está intimamente ligada à da feira. Seus pais começaram a participar da FAE em 1990, um ano antes dela nascer. No início, a família comercializava poucos produtos mas, com o passar do tempo, foi aumentando a diversidade de oferta. A viagem de cerca de 200 quilômetros, de Ipê a Porto Alegre, passou a ser semanal. Hoje, está na primeira banca da feira, “a banca dos feijões”, como é conhecida.
Maiara tentou trilhar caminhos diferentes. “Tentei sair da colônia três vezes mas, nas três vezes, voltei. Saí de casa para trabalhar fora e trabalhei no comércio. Mas não rolou e acabei voltando pra casa de novo. A gente tem uma qualidade de vida muito melhor aqui. A alimentação é cem por cento melhor. As pessoas na cidade às vezes são muito preconceituosas com quem vive na colônia. Eu odiava fazer faculdade porque me chamavam de colona e coisas assim. Mas eu nunca tive vergonha de ser colona e nenhum dos jovens que vivem aqui tem vergonha. Ninguém tem vergonha de dizer: eu moro no interior e produzo alimento orgânico”, conta.
Hoje, além de agricultora ecológica, ela participa da coordenação da Rede Ecovida, uma articulação de famílias produtoras em grupos informais, associações ou cooperativas, que tem uma forte presença da juventude. A Rede Ecovida, entre outras atividades, explica Maiara, funciona como órgão fiscalizador da agricultura orgânica no Estado. Ela destaca que a agroecologia foi um fator decisivo para ela permanecer trabalhando no campo. “O diferencial foi o orgânico. Tu pode falar com qualquer um dos jovens do nosso grupo que eles vão dizer a mesma coisa. Eu acredito que a agricultura orgânica segura muito mais jovens na colônia do que qualquer outro tipo de trabalho no interior”.
Biodinâmica: “a agricultura orgânica com um tempero mais”
Gabriel Riva Matias, 18 anos, trabalha com agricultura orgânica e biodinâmica desde pequeno. A família de Gabriel trabalha há 22 anos com orgânicos no assentamento de Reforma Agrária “Integração gaúcha”, localizado no município de Eldorado do Sul. Também há 22 anos, eles participam da Feira de Agricultores Ecologistas, no parque da Redenção, em Porto Alegre. “Nós já trabalhávamos com orgânicos. Aí, Lutzenberger nos apresentou a Colmeia e iniciamos essa relação com a feira. Começamos a trazer a nossa produção excedente para a feira e também passamos a fazer algumas entregas lá em Eldorado. Hoje, além da feira da Redenção, estamos também há 19 anos na feira do Menino Deus e, mais recentemente, em feiras no Shopping Total, no IPA e no bairro Três Figueiras”, conta.
A Cooperativa Pão da Terra, da qual a família de Gabriel participa, trabalha com panifícios e horta. Ao todo, são 56 variedades, entre pães, bolos e biscoitos, e, na horta, 86 variedades ao longo do ano. Onde Gabriel mora, a maioria dos jovens trabalha na cidade. “De 40 jovens que vivem no assentamento, 35 preferem ir trabalhar na cidade”, relata, mas ele valoriza a escolha pelo trabalho na terra, com a família. “O campo é um pouco sofrido, é uma lida difícil. Na cidade, pode parecer um pouco mais fácil, mas não é tão mais fácil assim. No início, os amigos da cidade, até pegam um pouco no pé, mas eu acho muito legal a vida que levo tendo essa conexão com a terra”.
Gabriel trabalha com uma tecnologia orgânica de produção, a biodinâmica, que envolve conhecimentos, ao mesmo tempo tradicionais e sofisticados, que a maioria dos amigos que optaram pela cidade desconhece por completo. Esses conhecimentos envolvem áreas como astronomia, química e biologia, entre outras. A biodinâmica é agricultura orgânica com um tempero a mais, resume. “Ela trabalha com o calendário lunar, com as fases da lua, e também com as constelações e planetas. De dia a gente não vê, mas as estrelas e planetas seguem ali. Dependendo da sua movimentação, há dias melhores para um determinado plantio ou para fazer alguma mudança na horta. Tudo isso através da observação do céu.”
Parte do “tempero a mais” da biodinâmica é a sílica, um preparado à base de silício moído que é colocado na água, onde permanece por uma hora. Depois ele é aplicado na lavoura. “Logo depois de uma chuva, ou mesmo de uma tempestade, esse preparado traz luz para a lavoura, ajudando ela a se recompor”, exemplifica Gabriel. Além desse composto de silício, outro ingrediente da produção biodinâmica é o fladen, um preparado que também é diluído na água e depois colocado na lavoura. “É um preparado para a terra que ajuda a decompor matéria orgânica e as plantas a se enraizarem. Ele ajuda as plantas e a terra a trocarem informações entre si. Um vai complementando o outro”, explica.
“Eu sei que nunca vou passar fome”
Amanda Lovatto, 23 anos, também participa da FAE desde que era um bebê. “As pessoas comentam ainda que lembram de mim desta época. A gente tem uma ligação muito forte com a feira. O meu pai sempre nos trouxe, eu e minha irmã, para cá. A gente gostava de ver o pessoal trabalhar e queria fazer a mesma coisa. Nós montávamos um banquinha ao lado da banca e ficava brincando de vender. O engraçado é que algumas pessoas compravam de nós mesmo. Posso dizer que me criei aqui, praticamente”, lembra. Para Amanda, a feira simboliza mais do que a comercialização de produtos. “Eu gosto muito daqui. Sinto um astral e uma energia. Se eu fico muito tempo sem vir me faz falta”.
Hoje cursando Agronomia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Amanda sempre quis trabalhar com alimentos e pretende seguir nesta área e, nem de longe, vê a opção de trabalhar com a terra com algo associado ao atraso, em relação às escolhas oferecidas nas cidades. “Com um pedacinho de terra, você pode fazer muita coisa. Eu sei que nunca vou passar fome e que posso tirar uma renda segura dali. Mesmo se, algum dia, eu quiser ter outras experiências, fora de casa, sempre vou ter essa segurança de voltar para esse pedacinho de terra que a gente tem lá em Farroupilha”.
(Foto: Divulgação)