"A realidade não é o que parece'"
Acabei de ler um livro maravilhoso, "A realidade não é o que parece'" (a estrutura elementar das coisas) do cientista Carlo Rovelli, de quem já tinha lido "Sete breves lições de física". O estudioso italiano está dedicando sua vida à explicação de uma nova concepção do Universo, com base nas recentes descobertas da física quântica, da teoria da relatividade geral, das ondas gravitacionais, do eletromagnetismo.
Tais estudos descortinam uma surpreendente visão do mundo que anula as antíteses tradicionais entre natural e sobrenatural, matéria e espírito. A lei fundamental da química, formulada por Antoine Lavoisier (1743-1794), "nada se cria, nada se destrói, tudo se transforma", regeria não apenas essa disciplina, mas todo o universo conhecido e outros mundos possíveis. O ser humano, como qualquer outra entidade, não é criado do nada, mas nasce da fecundação de um óvulo por um espermatozóide e vai adquirindo alma (mente ou espírito) pelo desenvolvimento das células cerebrais, assim como um cigarro provém da manipulação de folhas e se transforma em cinza e fumaça.
Todos os seres do cosmo, animados e inanimados, são compostos de "quanta", partículas subatômicas, invisíveis a olho nu, correlatas pela energia de ondas gravitacionais que harmonizam a totalidade do Universo. O vazio só existe ao nível do parecer, sendo pura impressão, visto que nenhum elemento da natureza poderia ficar isolado no espaço ou no tempo. Solto, iria para onde? Só essa atração cósmica poderia explicar porque, mesmo rodando à velocidade da luz, os asteróides, como nossos corpos, não caem na imensidão do universo, podendo apenas colidir entre si. E isso porque simplesmente não existe o vazio. Distinções como finito e infinito ou tempo e espaço, não deixam de ser apenas concepções da nossa mente, sem algum substrato real ou lógico.
A ciência, como a religião, visa o conhecimento do mundo em que vivemos. A diferença está no fato de que a fé fica parada no tempo, acreditando na revelação de doutrinas a profetas por divindades, sendo, portanto, consideradas verdadeiras e eternas, enquanto a ciência, mais humildemente, convencida da precariedade do saber humano, avança aos poucos. Para isso submete hipóteses à confirmação, corrigindo-se sucessivamente. Assim, a concepção cosmológica do egípcio Ptolomeu (a Terra imóvel no centro do Universo) foi substituída pelo heliocentrismo (é o nosso planeta a girar ao redor do Sol) dos renascentistas europeus Copérnico e Galileu.
A lei da atração terrestre, formulada por Newton ao observar que a maçã cai da árvore e não sobe, recentemente foi ampliada pela descoberta da existência de ondas gravitacionais, já preconizadas por Einstein e confirmadas por cientistas agraciados com o Nobel de física de 2017. Não parece a olhos nus, mas nosso planeta gira contínua e vertiginosamente ao redor de si próprio e do Sol, seu astro, cuja órbita integra o movimento de bilhões de galáxias. Nós não temos percepção de que andamos de cabeça para baixo, num movimento circular que anula a possibilidade da existência de um "sobre"natural. Também não refletimos no fato de que corpo e alma, como significante e significado, são conceitos distintos, mas inseparáveis, na semelhança das duas faces de um mesmo papel, sendo o cérebro suporte do espírito.
Que as aparências nos enganam já foi intuito por vários filósofos que se preocuparam com a diferença entre o "ser" (o que realmente é ) e o "parecer" (o fazer de conta, o imaginário). Enquanto Platão, especialmente pela parábola do Mito da Caverna, imagina a existência de dois mundos, o da realidade física e o das idéias abstratas que habitariam o mundo "hiperurânio" (transcendental), seu discípulo Aristóteles nega o sobrenatural, achando que a verdade pode ser encontrada na própria natureza. A idéia da árvore está na própria árvore, abstraindo das qualidades particulares (altura, cor etc.) o que é geral, comum a todas as árvores (raiz, caule e folhas).
A dicotomia ser/parecer não existe apenas na cosmologia ou na filosofia, mas está presente na nossa vida cotidiana, abrangendo religião, ética, política. Já foi observado que os artistas usam a mentira (a ficção de Shakespeare ou a pintura de Picasso, por exemplo) para revelar a verdade, enquanto os políticos usam a mentira para escondê-la. As religiões projetam a felicidade num mundo sobrenatural, que existe apenas na imaginação, no desejo dos que não se conformam com o sofrimento, a morte, a injustiça existencial. Que tal construirmos um mundo melhor, com mais felicidade nesta Terra, visto que nossa eternidade reside no filho que educamos, no livro que escrevemos, na árvore que plantamos, no quadro que pintamos?--
Dr. pela USP e Professor Titular pela UNESP
Autor do Dicionário de Cultura Básica (Publit)
Literatura Ocidental e Forma e Sentido do Texto Literário (Ática)
Pensar é preciso e Pesquisando (Editorama)
www.salvatoredonofrio.com.br
http://pt.wikisource.org/wiki/Autor:Salvatore_D%E2%80%99_Onofrio