A sala de aula, o tribunal e a autonomia universitária

12 de março de 2018 661

Há alguns anos tornou-se popular dentre alguns professores, principalmente da educação básica, encenar uma espécie de tribunal para debater alguns tópicos em sala de aula. Esse recurso didático, em que pese as boas intenções didáticas, tem uma grande desvantagem no processo pedagógico: induzir a uma confusão entre as práticas do campo do direito e as do campo da produção de conhecimento científico e/ou escolar.

Pierre Bourdieu, sociólogo estudioso dos campos sociais do direito, da ciência, da comunicação, da educação e da universidade, ressaltou de forma muito apropriada as distinções entre as atuações nesses campos, em que pese as inegáveis relações entre eles. Sustentou ainda que a autonomização do campo científico em relação ao político era uma condição importante para o bom desenvolvimento de uma ciência, ou de uma área de conhecimento acadêmico. Ora, o que vemos no Brasil atualmente, principalmente desde 2016, é os professores e pesquisadores sendo obrigados a se dedicar a uma resistência política necessária para que possam desenvolver livremente e produtivamente suas atividades. E não são somente as tentativas de cerceamento vindas do Ministério da Educação que nos preocupam, que pretendem impedir que o cientista político Luís Felipe Miguel ministre na UnB um curso sobre o que ele, juntamente com outros estudiosos, denominam Golpe de 2016. A judicialização das relações políticas e sociais em curso também ameaçam o processo pedagógico e de produção de conhecimento.

Recentemente vivemos mais um episódio destas relações complicadas no campo acadêmico e pedagógico, na série de manifestações e tentativas de obstrução relacionados ao curso que o Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da UFRGS pretende oferecer sobre o Golpe de 2016. Ao ser convidada pelo jornal Zero Hora para expor seu posicionamento sobre a pertinência do oferecimento do curso, a professora doutora Cláudia Wasserman, diretora do IFCH, manifestou-se no sentido de discutir esse assunto com pessoas do campo no qual ela atua: a universidade. Garantida essa condição, assentiu na publicação do seu texto, mas foi surpreendida por um aviso de última hora que o contraponto não seria realizado por outro professor universitário, como inicialmente informado a ela pelo jornal, mas por uma procuradora pública.

Antes que se pense que as reservas em torno da interlocução seja motivada por algum tipo de arrogância intelectual, é importante situar a propriedade do posicionamento da professora e para isso retomo a metáfora entre o tribunal e a produção científica. Primeiramente, esses campos são regidos por princípios teóricos e de atuação distintos, pois enquanto a pesquisa em ciências humanas busca compreender, refletir, uma dada situação, o tribunal deve realizar um julgamento. Além disso, em sala de aula e na pesquisa costumamos problematizar, cercar, não somente os argumentos de uma dada teoria, mas uma variedade de práticas que lhe são correlatas. Frequentemente, onde muitos visualizam “dois lados em disputa”, como a encenação do tribunal acaba por sugerir, os estudiosos sérios expõem e demonstram a complexidade de múltiplas facetas do jogo social e político. Além disso, as abordagens históricas, que me são familiares, colocam no centro da análise as considerações em torno da duração, da temporalidade, pois comparam esses processos social e politicamente complexos com outros similares mais ou menos distanciados no tempo.

Como se não bastassem esses desafios, enquanto docentes que somos e em busca de constante atualização tanto no que tange ao conhecimento que é objeto de nossa especialidade, quanto nas formas de ensiná-lo, estamos acostumados a conduzir debates em sala de aula, garantindo a liberdade de expressão, vigilantes pela manutenção de um clima propício à aprendizagem e zelosos pela ética das relações dos alunos entre si e, destes, conosco. Sendo assim, é com indignação que pergunto por que, nos últimos anos, especialmente após 2016, tantos especialistas de outras áreas pensam ser eles os mais aptos a determinar ou dirigir as formas pelas quais os professores devem atuar em sala de aula, devem construir os currículos escolares, devem selecionar os assuntos de que falam?

Talvez algumas opiniões sobre o que e como a universidade deve ensinar ainda estejam marcadas pela imagem de um processo pedagógico autoritário, em que o professor não ouvia ninguém e tinha a última palavra em uma espécie de hierarquia escolar e acadêmica que, se em alguma faculdade ou escola ainda existe, está virtualmente em desuso ou em vias de desaparecer. Se temos uma posição destacada e dotada de certos poderes em sala de aula, estes certamente não se baseiam em parâmetros discricionários.

Nosso “poder”, ou lugar especial, somente se configura na medida em que se legitima perante a sociedade por intermédio de uma expertise construída não somente pela formação e especialização na área de conhecimento em que atuamos, mas também pelos anos de prática pedagógica nas escolas e nas universidades.

Voltando ao recurso didático do tribunal em sala de aula, penso que ele é mais danoso que proveitoso. Os fazeres científico e escolar são muito mais complexos que a simulação que opõe erro e acerto, verdade e mentira e que, ao dar igual espaço para defesa e acusação, pretende garantir automaticamente o respeito à democracia. Os desafios à democracia na sala de aula são mais radicais do que este, porque ao mesmo tempo em que o professor não pode simplesmente impor a um aluno um rótulo tal como o de “racista”, por exemplo – pois ao menos na educação básica tratamos majoritariamente com crianças e adolescentes -, ele tampouco, ou, em primeiro lugar, não pode permitir que um aluno seja vítima de racismo pelos seus colegas.

Na universidade, se já lidamos com jovens adultos, o desafio, entretanto, não é muito diferente, pois persiste a nossa responsabilidade na condução de debates éticos, e ainda temos que lidar com uma maior capacidade de argumentação de todos os agentes sociais envolvidos no processo pedagógico. É por isso que os conflitos internos na universidade não podem ser tratados meramente como caso de polícia. É por isso que a universidade precisa de liberdade e autonomia para exercer da melhor forma o seu papel. É na defesa destes valores que estamos militando politicamente, não em torno de uma causa partidária.

Buscamos preservar os avanços obtidos no âmbito educacional desde a constituição de 1988. Cercear a autonomia universitária somente nos faz desviar energias daquilo que mais gostamos e sabemos fazer em prol da sociedade: estar em sala de aula, nos núcleos de pesquisa, nos corredores da universidade, produzindo e divulgando conhecimento.

Para respeitar a democracia e os direitos de aprendizagem dos alunos e alunas não basta admitir que o conhecimento se relaciona inevitavelmente com as ideologias ou propor em sala de aula o simulacro da oposição entre dois contraditórios para se chegar a um veredito. É necessário muito mais do que isto, pois é preciso explicitar “o lugar de onde falamos”, isto é, os pressupostos que embasam nossos posicionamentos e os conceitos e dados empíricos a que as nossas proposições se referem. Ninguém é obrigado a defender uma tese na qual não acredita e isso não invalida o caráter científico e democrático do debate. Estas reflexões não são novidades para quem vive o cotidiano pisando o chão da sala de aula. É a partir deste lugar que falo e escrevo e, como uma das docentes que voluntariamente aderiu à proposta do curso “O golpe de 2016 e a nova onda autoritária no Brasil” (nenhum dos professores foi “convidado”), me manifesto em prol da autonomia universitária neste país.

(*) Professora do Departamento de História da UFRGS e Coordenadora do Núcleo UFRGS do Mestrado Profissional em Ensino de História (PROFHISTÓRIA)