‘Agora, com o surto, as pessoas veem que tem que investigar a toxoplasmose’, diz médico

31 de maio de 2018 545

O surto de toxoplasmose em Santa Maria, confirmado na metade de abril, ajudou a chamar a atenção para a ocorrência da toxoplasmose. Essa é a avaliação do médico oftalmologista, Cláudio Silveira, um dos maiores especialistas na doença no mundo, que comanda o Centro de Referência de Toxoplasmose, em Erechim, na região noroeste do Rio Grande do Sul, a 375 km de Porto Alegre.

A cidade de pouco mais de 100 mil habitantes foi a primeira do Brasil a ter um diagnóstico da doença. Por anos, o pai de Silveira, também médico especializado na área de oftalmo, atendeu casos de jovens da região que perdiam a visão repentinamente, sem pistas do que poderia estar acontecendo. A sugestão de que ele deveria pesquisar a toxoplasmose como hipótese veio de um médico colombiano que ele conheceu em um congresso, fora do país. Na época, por volta dos anos 1940, os exames de sangue tinham de ser enviados à Itália para testes.

Alguns dos casos que Silveira estuda hoje, que já despertaram interesse de médicos do Instituto Nacional de Saúde dos Estados Unidos, são desta época. Agora, ele acompanha também a situação de Santa Maria, que já teve 460 casos confirmados, com mais de mil pessoas com suspeita de contaminação.

Para o médico, descobrir a forma como a doença foi adquirida na cidade da região central é importante, mas o principal é investir em conscientização e informação sobre a doença. Um dos problemas, ele diz, é que apesar da toxoplasmose ser comum e recorrente, ela também é muito negligenciada pelos próprios médicos que esquecem de investigá-la em pacientes que apresentam os sintomas.

Silveira conversou por telefone com o Sul21 sobre como analisa o surto de Santa Maria, algo que ele mesmo diz ser “inédito no mundo”, e a questão da toxoplasmose.

Sul21: Qual a sua avaliação sobre o surto em Santa Maria? Ele pode mesmo ser o maior do mundo?

Cláudio Silveira: Em 2001, fui ao Paraná acompanhar um episódio [de contaminação] que era considerado o maior do mundo, em Santa Isabel do Ivaí. A cidade tinha uns 9 mil habitantes, 6 mil na parte urbana e 3 mil na parte rural. Lá, cerca de 600 pessoas foram contaminadas por uma caixa d’água, por causa de um gato. Nós estudamos cerca de 460 pessoas, mais ou menos o mesmo número que se estima em Santa Maria até agora, onde pode ser muito maior. Primeiro, porque a cidade é maior, Santa Maria tem 200 mil habitantes. Segundo, porque eles já têm casos sintomáticos, a gente não sabe até onde vai, mas provavelmente vai ser maior do que tem até agora. Então, concordo que pode ser o maior. Santa Isabel do Ivaí era considerado o maior do mundo, nós fizemos um estudo bem detalhado, dessas pessoas, nós examinamos o fundo do olho de cada uma, mais de uma vez. A gente foi na época aguda e, depois de um tempo, a gente voltou, porque essa doença, a gente não consegue eliminar, você trata, ela fica num estado latente, fica “dormindo”. O bichinho fica “incrustado” pela vida inteira. Uma vez que você adquiriu, você vai ter por toda a vida. Fica uma bomba-relógio, uma hora pode abrir. Ele vai abrir em situações, por exemplo, de baixa imunidade, a pessoa começa a ter outras doenças, em algum stress importante também. O toxoplasma é oportunista, ele espera condições para se multiplicar e, por isso, tem que acompanhar. O que deve acontecer em Santa Maria. Eu tenho orientado o pessoal que, primeiro, tem que examinar o fundo do olho de todo mundo. Tem que dar uma orientação para que façam auto-exames em casa, porque a pessoa pode estar bem hoje e, no final do mês, ter sintomas. Depois, tem que ter acompanhamento nos primeiros meses, primeiros anos. Isso estamos falando de adultos imunocompetentes, se falar de gestantes, o cuidado é maior. Na maioria dos casos, quando se diagnostica a doença, começa a tratar e tem que seguir até o nascimento do bebê. Se o bebê contraiu a doença, tem que passar a tratá-lo também.

“Esperem um pouquinho, até entender o que está acontecendo lá”, recomenda Silveira a gestantes | Fotos: Divulgação/Prefeitura de Santa Maria

Sul21: Quais os efeitos que a doença pode ter durante uma gravidez?

Silveira: Depende da época. Se pegar nos primeiros três meses, você vai ter 10% a 11% das mães com comprometimento: ou a mãe vai abortar, a gravidez não vai adiante, ou há um comprometimento neurológico importante, como hidrocefalia ou microcefalia. Essas crianças vão ter comprometimentos severos. Agora, se for mais para o final da gestação, nos últimos três meses, você chega a ter 60% das mães transmitindo, aumenta muito o número de complicações, porque a placenta está mais conectada. O parasita entra no útero através da placenta, então, no final da gestação você vai ter muito mais casos, só que não tão graves quanto os outros. Pode dar, por exemplo, uma lesão ocular.

Sul21: A melhor recomendação, então, é que as mulheres que puderem adiem a gravidez neste momento?

Silveira: Esperem um pouquinho, até entender o que está acontecendo lá.

Sul21: O senhor falou do caso no Paraná, quanto tempo demorou para achar a fonte de contaminação lá?

Silveira: Lá foram cerca de 600 contaminados, a gente estudou 457 pacientes. Mas o número poderia variar, porque eu mesmo vi pacientes, familiares de médicos, que iam fazer exame em São Paulo e não fizeram parte do número da secretaria municipal de saúde. Eu cheguei no início de 2001, em janeiro, fevereiro foi a época que a gente fez o acompanhamento, eles [encontraram a causa] no final do ano. Demorou um pouco. Depois se descobriu que tinha essa caixa d’água, que estava no nível do solo, fechada com concreto, só que ele era permeável. Fizeram um teste com corante e ele passou. Tinha uma gata com ninhada próxima a esse local e aí contaminou a caixa que distribuía para toda a cidade. Porém, até aí a gente não tinha o parasita na água. Uma pesquisadora, muito inteligente, teve uma ideia: no fim do ano, as escolas de férias, a água das caixas ficava parada. Então, ela pensou que algumas delas ainda poderiam ter aquela água da época da contaminação e começou a estudar as caixas d’água das escolas e identificaram o que era, o tipo de parasita. Aliás, isso a gente também não sabe de Santa Maria.

Sul21: O tempo que se leva para encontrar a fonte de contaminação pode ampliar os riscos de uma epidemia?

Silveira: O mais provável é que não seja uma fonte contínua de contaminação. Porque para ser contínua, teria que ter uma situação especial. O que pode ter acontecido é que houve uma contaminação em abril, que muita gente pegou e agora estão aparecendo os casos. Mas não que essa fonte continue infectando as pessoas. Isso não se sabe, é uma suspeita. Seria mais grave se continuasse a ter uma fonte ativa de contaminação, mas estamos especulando. Por exemplo, em São Paulo, aconteceu em uma fábrica da Mercedes, as pessoas que trabalhavam lá começaram a pegar a doença. Centenas de pessoas, isso durou meses e eles não descobriam porque não é fácil identificar a fonte. Lá sim, passava um período, elas se recontaminavam de novo. A gente tem condições de saber, avaliando um paciente, se ele pegou a doença há dois meses ou 15 dias. Eles identificaram que as pessoas seguiam pegando a doença, acharam uma caixa grande d’água e no canto próximo a ela tinha um gatinho que estava contaminando com as fezes. O gato, logo que ele nasce, é a época que ele mais contamina. Na hora que descobriram, tiraram o gato, não teve mais contaminação. Teve outro caso, em 1995, no Canadá, em Victoria, na Colúmbia Britânica, muito famoso, que foi o primeiro do mundo de contaminação pela água. [O parasita] estava nas fontes de água da cidade, antes da captação, que vinham de montanhas que tinham gatos selvagens que contaminaram. Mais de 100 pessoas pegaram a doença.

Sul21: A toxoplasmose é conhecida como “doença do gato”. Qual a relação do animal com a doença?

Silveira: Toda. O gato – que pode ser ainda tigre, onça, gato selvagem – é o único animal que o toxoplasma faz um ciclo de reprodução sexuada. Então, você dá um toxoplasma para um gato comer, em uma carne crua, em alguns dias ele elimina milhões de toxoplasmas e contamina o solo com isso. Essa contaminação, se for numa horta, num jardim, numa caixa de areia nas escolas, pode contaminar crianças. Sabe quanto tempo dura o ciclo de vida desse [contaminador]? Dois anos. Em dois anos, vem sol, vem chuva, vira pó, pode ir longe pelo ar. A pessoa que descobriu que o gato era o responsável fez um estudo onde pegou material radioativo e deu para o gato comer. Assim se descobriu que as fezes de gatos se espalham por 5 km, a contaminação do ambiente é muito grande.

“A forma mais comum é pela alimentação. (…) Basicamente, em alimentos crus, verduras e frutas mal lavadas” | Fotos: Divulgação/Prefeitura de Santa Maria

Sul21: Quais são as formas mais comuns de contaminação?

Silveira: A forma mais comum é pela alimentação. Se comer uma carne que não é bem cozida, como galinha, aquele coraçãozinho que se come no churrasco pode transmitir, porque tem muito toxoplasma. É muito parecida a contaminação dos suínos, das galinhas e das ovelhas. Carne de gado é mais raro, alguns pesquisadores nem acreditam que ela transmita. [O risco] são as carnes que se comem cruas, como a de porco, nos embutidos, como copa e salame. Basicamente, em alimentos crus, verduras e frutas mal lavadas. Quem lida com jardim, horta, a caixa de areia para as crianças. A outra forma é a ingestão de água contaminada, que é o que se suspeita em Santa Maria. A água é muito fácil de espalhar, ela vai para todos os lugares.

Sul21: Então, no caso de Santa Maria, realmente é mais provável que seja pela água?

Silveira: É o mais provável, mas não se sabe. Ninguém provou ainda. Como eles estão fazendo vários estudos, acho que é questão de tempo. Tem que ver as fontes, lembrar do caso de Canadá, onde a água foi contaminada antes de chegar nos reservatórios, ver onde é a captação dessa água.

Sul21: No relatório que saiu, dizia que a água não estaria contaminada.

Silveira: Eu sei, mas é que fizeram um. No Paraná, só foram descobrir quando alguém lembrou que poderia ter um lugar onde a água ficou depositada. Aquela água contaminada pode ter ido embora e a que está passando agora já não tem.

Sul21: O que o senhor recomendaria que o poder público deveria estar fazendo agora?

Silveira: Eles já estão fazendo tudo. Eu tenho acompanhado a questão de repetir os testes, para checar todas a possibilidades. Tem que ver onde poderia ter uma água que ficou depositada, tem que mapear, mas, pelo que sei, eles estão fazendo. Demora, porque não é fácil de achar.

Sul21: Se não conseguirem identificar a fonte, que riscos a população corre?

Silveira: Isso vai parar. É importante descobrir para entender o que está acontecendo, mas não acredito que vá mudar muito porque vamos descobrir algo que já aconteceu. A não ser que seja essa possibilidade que alguém está levantando, de que as pessoas continuam se contaminando. Daí teremos um problema. A gente tem um estudo aqui em Erechim, é o estudo mais completo que se fez no mundo, porque aqui é considerado um dos lugares onde mais se tem toxoplasmose. Não tem um surto, tem uma área endêmica, constante. O que mais acontece são lesões oculares. Só no Centro de Referência em Toxoplasmose, onde atendo aqui, temos 20 mil casos de lesões, com pacientes de toda a região sul.

Sul21: E a explicação para essa endemia, nesta região?

Silveira: Aqui é uma região de colonização italiana, onde se tem hábito de comer embutidos. Toda propriedade rural tem um porquinho para subsistência e consumo. Não são todos que são contaminados, é igual ao mundo inteiro. Se você for na França, na Holanda, vai ter. Eles estudam muito isso na Europa. Só que aqui, como é constante, a pessoa come uma vez por semana, vai chegar uma hora que ela vai encontrar uma dessas carnes contaminadas. Tem pessoas que pegam aos 20, 30, 40 anos e sempre comeram. Não é que tudo esteja contaminado, mas a exposição é muito grande. Nosso estudo foi na década de 1980, o caso do Canadá aconteceu nos anos 1990, e aí se passou a ter um cuidado maior com a água.

Sul21: Tendo em vista tudo isso, como o senhor vê o caso de Santa Maria hoje? É para preocupação?

Silveira: Acho que é importante. Há 30 anos que a gente fala nas escolas, mas na prática continua sendo muita gente, porque é difícil mudar hábitos. Por isso que a gente dá muita atenção às crianças, porque elas são mais sensíveis à informação. Isso é uma coisa cultural e pode ser mudado. Na Holanda, por exemplo, uma época eles controlaram o gado e a contaminação chegou a praticamente a zero. Depois, tiveram que liberar de novo para o campo e voltou. Quer dizer, pode ser que eles tenham razão, porque a toxoplasmose sempre existiu.

Na Casa de Saúde de Santa Maria, começou a funcionar um ambulatório especializado para atendimento oftalmológico | Fotos: Divulgação/Prefeitura de Santa Maria

Sul21: Então, o melhor caminho é a prevenção através da educação para essas mudanças de hábitos?

Silveira: Claro. Mesmo aqui em Erechim, eu recebo muitos pacientes que passam 30 ou 40 dias com febre, mal-estar, todo mundo investigando, fazendo muitos exames e o de toxoplasmose é o último. Agora que a gente está vendo [o surto], as pessoas estão vendo que tem que investigar a toxoplasmose. É bem simples o exame para identificar, como esse que estavam fazendo em Santa Maria, tu pesquisa ali os anticorpos e detecta.

Sul21: Quanto antes o diagnóstico, melhores as chances de tratamento?

Silveira: A evolução é boa tratando desde o começo, o problema é se você já pega ela avançada, porque ela vai voltando. Nessas recidivas que a gente chama, quando ela volta, ela termina comprometendo a visão. O problema é que ela fica latente. Você pode pegar a doença hoje e daqui a dez anos nem lembrar. Por isso que essas pessoas tem que ser alertadas, receber orientação. O problema desse caso [de Santa Maria] é que é muita gente ao mesmo tempo. Eu vejo mais gente aqui do que tem em Santa Maria, mas os casos que aparecem estão sendo controlados, não é um tipo de doença que passa de uma pessoa para outra, que a gente ficaria preocupado.

Sul21: O que esse episódio de Santa Maria deixa como lição?

Silveira: Primeiro que, não só Santa Maria, mas todas as cidades, devem estudar uma maneira – e tecnicamente existe – de filtrar a água para que não ocorra. Essa forma de toxoplasma fica em torno de 10 micra, então, filtros com uma ou até cinco micras, já não deixam passar o toxoplasma. As técnicas de usar cloro, por exemplo, não matam o parasita e nem eliminam a possibilidade. Se eles puderem usar um filtro, ensinar as outras companhias de distribuição de água que todas deveriam usar, para não deixar uma água possível de conter o toxoplasma. Tem um outro problema: os bancos de sangue. Eles não têm como rotina testar toxoplasmose, apesar de testar várias outras doenças. Felizmente é um evento raro, mas muitas pessoas podem adquirir a doença por transfusão de sangue, porque não é um exame exigido. Então, tu vê que é uma doença para a qual não se dá atenção. Essa que deve ser a lição de Santa Maria. Tem que pensar nela cada vez que for avaliar um paciente que tem febre, dor no corpo, como uma gripe. Tem um caso importante no Rio Grande do Sul, um paciente recebeu um transplante de coração e ficou cego dos dois olhos porque adquiriu uma toxoplasmose, porque ela é negligenciada e não é testada.

Sul21: Por que acontece isso, se ela é uma doença tão comum e recorrente?

Silveira: Eu estudei na UFRGS, em Porto Alegre, que na época era a faculdade mais importante de Medicina no Estado. Lá eles me ensinaram que no Rio Grande do Sul existiam três casos confirmados de toxoplasmose. Aqui em Erechim meu pai já trabalhava como oftalmologista no Centro de Referência da doença, que começou na década de 1950, já tinha mais casos e eles não sabiam. Existe uma desinformação. Acho que isso é uma coisa que pode ocorrer e já estou em contato com o pessoal de Santa Maria, para orientar os oftalmologistas. A ideia é fazer campanhas de prevenção.

 

 

Fotos: Divulgação/Prefeitura de Santa Maria