AINDA SOBRE A HISTÓRIA DOS EXCLUÍDOS
No mês passado, esteve em São Paulo, lançando mais um livro na Editora da UNESP, o respeitado historiador inglês Peter Burke, um dos expoentes da Nova História Cultural. Burke, filho de pai católico irlandês e de mãe judia polonesa, fez uma conferência muito bonita, sobre a utilização de imagens como documentos históricos, tema do livro que estava lançando. Não leu a conferência, como costumam fazer muitos europeus, mas apresentou-a à moda brasileira, de improviso e sem embaraço. Falou com forte sotaque britânico, mas num português claríssimo e, do ponto de vista gramatical, impecável. Burke é, aliás, casado há muitos anos com uma brasileira e já lecionou na USP e em outras universidades brasileiras. A mediação da conferência foi feita, de modo brilhante, pela Profa. Mary Del Priore, do IHGB.
No artigo anterior, desta coluna semanal, tratamos da chamada “História dos Excluídos”, ou seja, daqueles que fazem História anonimamente, de modo discreto, sem estarem no foco das atenções e dos registros oficiais. O assunto tem tudo a ver com Peter Burke, que comentou, em texto muito conhecido e frequentemente citado, dois relatos da batalha de Waterloo. Uma exposição pormenorizada da batalha foi escrita pelo general que a venceu, o Duque de Wellington. Como ele próprio reconhece, a vitória foi devida à providencial chegada, já no final da tarde de um dia chuvoso, das tropas do general prussiano Blucher. Até aquele momento, a decisão da batalha estava incerta e havia ainda uma possibilidade muito grande de Napoleão sair vencedor. Mas a chegada de Blucher, que vinha em marcha batida e conseguiu chegar a tempo, foi fatal para Napoleão e selou para sempre sua sorte.
Outra descrição, da mesma batalha, foi encontrada no diário de um soldado raso inglês que participou do combate e também registrou suas impressões e sua versão dos acontecimentos. São óticas diversas que permitem, aos historiadores de hoje, uma visão mais completa e abarcativa do grande acontecimento. Tanto o soldado quanto o generalíssimo participaram da batalha. Portanto, o resultado dela deveu-se aos dois. Mas não se pode dizer que se deveu igualmente aos dois. As massas, as multidões, os anônimos, têm sem dúvida seu importante papel na História. Mas querer uma história sempre vista de baixo para cima, parece-me desarrazoado. Pois sempre terá razão Hobsbawm, que diz que, na História, muito pouca coisa se fez de grande, que não fosse obra de elites. Lembre-se, ainda, a famosa frase atribuída a Alexandre: "Eu não temeria um grupo de leões conduzidos por uma ovelha, mas temeria um rebanho de ovelhas conduzidas por um leão."
De qualquer forma, é sempre enriquecedor analisar os acontecimentos históricos nas duas óticas: na oficial, que normalmente provém dos grandes protagonistas, e também a partir de documentação primária de pessoas simples, que estão muito distantes dos centros de decisão do poder.
Adquiri no ano passado, num site de leilões europeu, por uma quantia muito acessível (custou menos do que eu pagaria aqui no Brasil por um livro novo de 800 páginas) um acervo que é um verdadeiro tesouro, nessa linha. Trata-se de um conjunto de 410 cartas trocadas entre um casal francês durante a Segunda Guerra Mundial. Eram jovens, os dois, tinham acabado de casar e ainda estavam na lua-de-mel quando estourou a Guerra. O rapaz foi convocado, serviu no Exército francês durante a fase inicial do conflito e caiu prisioneiro dos alemães durante a “Blitzkrieg” da primavera de 1940. Passou mais de quatro anos num “Stalag", campo de concentração de prisioneiros militares. Não era um campo de extermínio, mas era um campo de concentração privilegiado, digamos assim, com trabalhos forçados, para os não-oficiais, mas no qual os alemães, por força dos acordos de Genebra, eram obrigados a tratar razoavelmente bem os prisioneiros, que até podiam se corresponder com suas famílias.
O resultado é que, nos anos em que esteve prisioneiro, o rapaz e a moça trocaram mais de 400 cartas, que estão, todas, em meu poder. São interessantíssimas. Vê-se que a moça é de nível cultural bem superior ao marido. Pela letra regular e pela fluência da escrita, vê-se que tinha algum estudo. Já ele escrevia com letra tosca e num francês com muitos erros de ortografia. Das 410 cartas, umas 370 são da moça, que escrevia mais, umas 40 são do rapaz. Há troca de fotografias dos dois, durante a guerra. Os assuntos políticos e militares eram vedados nessa correspondência, mas nas entrelinhas podem ser notadas alusões sobre o andamento da Guerra.
Estou aos poucos explorando essa documentação primária, que poderá, mais tarde, render um livro bem interessante, na linha da “História dos Excluídos”. Será sobre a Segunda Guerra vista por um casal apaixonado, separado pela força das circunstâncias.
ARMANDO ALEXANDRE DOS SANTOS é historiador e jornalista profissional, membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e da Academia Portuguesa da História