ARMANDO ALEXANDRE DOS SANTOS - A HISTÓRIA, UMA CIÊNCIA NÃO EXATA
A História, em última análise, baseia-se na memória dos homens, a qual, como vimos nos artigos anteriores desta série, é extremamente variável, de pessoa para pessoa. Daí se conclui, em sã lógica, que a História não é nem poderia ser uma ciência exata, como o são a Matemática, a Física e a Química.
Isso faz com que os historiadores devam tomar muito cuidado com suas interpretações. Sobretudo, quando alguém fala de si mesmo, ou escreve sobre si mesmo, ou conserva um documento sobre si mesmo para conhecimento dos futuros, há que tomar cuidado.
Sobre o verdadeiro alcance das limitações das biografias, o historiador francês Pierre Bourdieu escreveu um texto que se tornou clássico, intitulado “A ilusão biográfica” (L´illusion biographique. Actes de la Recherche en Sciences Sociales, Année 1986, p. 69-72).
Quanto às autobiografias e livros de memórias, por mais sinceros e completos que procurem ser, sempre terão algo de suspeito. Eles exprimem com veracidade os indivíduos que os escreveram, ou exprimem, mais bem, a imagem que esses indivíduos formaram de si e que pode não corresponder à realidade, mesmo admitindo que eles sejam absolutamente sinceros e honestos na seleção e exposição das suas reminiscências?
Pessoas que escrevem memórias com a intenção de deixar um monumento de suas vidas - seja por razões políticas, seja por razões familiares, seja por sentirem tão-somente a necessidade de extravasarem os sentimentos e deixarem consignadas, por escrito, suas experiências pessoais - até que ponto não exprimem, nas memórias, uma imagem autoidealizada, que desejam fixar no papel e deixar para os pósteros?
Até que ponto uma “biografia-autorizada”, como tantos políticos, artistas e empresários, hoje em dia, gostam de patrocinar, é biografia no sentido pleno e corrente do termo? Não será ela uma ficção, uma projeção mais consciente ou menos, do personagem que a autoriza?
Essas são questões que devem ser consideradas por quem estuda seriamente a História.
Para nós, no momento presente, é sem dúvida muito claro que a História não é nem poderia ser uma ciência exata. Mas já houve na História quem pretendesse fazer dela uma ciência exata e acreditasse seriamente que tal coisa era realizável.
Essa era a crença dos historiadores da chamada Escola Metódica, de inspiração positivista, que foi predominante em todo o Ocidente, desde meados do século XIX até que, a partir de 1929, novos paradigmas surgissem, com a chamada Escola dos Annales, movimento historiográfico formado na França, em torno da revista universitária Annales d´histoire économique et sociale, fundada por Lucien Febvre (1878-1956) e Marc Bloch (1886-1944), professores da Universidade de Estrasburgo.
Até então, o que vigorava era o positivismo, crença de caráter cientificista, determinista e evolucionista, segundo a qual a História era um traçado linear perfeitamente pré-traçado e previsível. O próprio marxismo pagava pesado tributo a essa mentalidade, na medida em que traçava leis que supunha inelutáveis para o desenvolvimento das sociedades.
A mentalidade cientificista contagiara a Historiografia, sobrevalorizando o documento escrito, único (ou quase único) elemento considerado válido para uma análise histórica científica. “Scripta manent, verba volant” (as coisas escritas permanecem, enquanto as palavras voam), pensava-se. O historiador positivista francês Fustel de Coulanges (1830-1889) tem uma frase que é profundamente verdadeira ou profundamente falsa, dependendo da interpretação que se lhe dê: "Pas de documents, pas d'Histoire" (sem documentos não há História). É verdadeira, se entendermos documentos em sentido amplo, é falsa se considerarmos documentos apenas em sentido estrito, ou seja, apenas documentos escritos e oficiais.
Imagine-se algum historiador futuro que quisesse escrever uma história do Brasil nas duas primeiras décadas do século XXI e considerasse como únicas fontes “confiáveis” as coleções de Diários Oficiais da União, dos Estados e dos Municípios, complementadas pelos programas radiofônicos da Voz do Brasil... Por mais risível que nos pareça essa ideia, era o que os positivistas do século XIX reputavam ideal para uma “história científica” que exprimisse a verdade objetiva dos fatos!
ARMANDO ALEXANDRE DOS SANTOS é licenciado em História e em Filosofia, doutor na área de Filosofia e Letras e professor da Unisul. Também é Membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e da Academia Portuguesa da História.