Como Putin tem conseguido enrolar Trump para o cessar-fogo na Ucrânia
O presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, prometeu diversas vezes que era capaz de acabar com a guerra entre Rússia e Ucrânia em apenas um dia assim que assumisse o governo. Entretanto, mesmo após quase 90 dias no cargo, o conflito continua com bombardeios, ameaças e acusações.
▶️ Contexto: A guerra na Ucrânia completou três anos em fevereiro. Antes, o governo ucraniano tinha os Estados Unidos como aliados de primeira hora. No entanto, com a chegada de Trump à Casa Branca, os americanos passaram a se aproximar da Rússia.
- Se antes os EUA adotavam uma política para isolar a Rússia do restante do mundo, com o objetivo de pressionar pelo fim da guerra, agora Trump tem conversado com o presidente Vladimir Putin e outras autoridades russas.
- Enquanto isso, a Ucrânia tem sido alvo de críticas por parte de Trump, que chegou a chamar o presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, de ditador e ingrato.
- Ao fundo da disputa está o interesse dos Estados Unidos nas terras raras da Ucrânia. Trump quer dominar a extração de minérios no território como forma de "recuperar" a ajuda que os EUA forneceram ao país.
❌ Negociações lentas: Trump vinha afirmando que os Estados Unidos vão conseguir interromper a guerra ao negociar com a Rússia e a Ucrânia. Até agora, os americanos conversaram separadamente com autoridades dos dois países. Mas nada de concreto aconteceu, e o tom do presidente foi ficando cada vez menos categórico.
- No dia 11 de março, a Ucrânia disse ter concordado com a proposta de cessar-fogo de 30 dias apresentada pelos Estados Unidos. Por outro lado, a Rússia impuseram novas exigências.
- Ainda em março, um acordo para interromper ataques contra estruturas energéticas dos dois países e no Mar Negro chegou a ser anunciado, mas teve pouco efeito prático.
- Trump chegou a dizer que a Rússia precisava "se mexer". Dias depois, afirmou que o presidente ucraniano fez um péssimo trabalho para impedir o início da guerra, em 2022.
- Diante da lentidão, o secretário de Estado americano, Marco Rubio, afirmou nesta sexta-feira (18) que Trump abandonará os esforços de intermediação do acordo de paz dentro de alguns dias caso não haja sinais claros de avanço nas negociações.
-
Neste cenário, trocas de ataques continuam sendo constantes, inclusive em áreas residenciais. Apenas no domingo (13), um ataque da Rússia contra a Ucrânia deixou mais de 30 mortos na cidade de Sumy.
🚩 Exigências difíceis dos dois lados: ao prometer que a guerra acabaria, Trump subestimou divergências entre Rússia e Ucrânia, com exigências das quais não abrem mão. Moscou, por exemplo, quer que Zelensky deixe o poder e o reconhecimento, por parte de Kiev, da anexação dos territórios ocupados — o que a Ucrânia não aceita.
🔎 O g1 ouviu dois especialistas sobre o assunto.
- "Na prática, o que a Rússia busca é tempo para reforçar suas posições no campo de batalha, desmoralizar os ucranianos, testar os limites do Ocidente e aprofundar fissuras dentro da aliança transatlântica", afirma Uriã Fancelli, mestre em Relações Internacionais pelas universidades de Estrasburgo e Groningen.
- "Trump dizia muitas vezes na campanha que iria acabar com a guerra em 24 horas. E o que a gente está vendo é que não é tão simples assim. Os objetivos da Rússia e da Ucrânia nessa guerra são incompatíveis", diz Maurício Santoro, doutor em Ciência Política pelo IUPERJ e colaborador do Centro de Estudos Político-Estratégicos da Marinha do Brasil.
-
Nesta reportagem você vai ver:
- O que Trump prometeu
- A influência de Putin
- Os desafios para a Ucrânia
-
Trump durante comício no Michigan em 5 de novembro — Foto: Evan Vucci/AP
1. O que Trump prometeu
-
Mais de um ano antes de ser eleito presidente pela segunda vez, Trump disse que era capaz de encerrar a guerra na Ucrânia em apenas um dia. Em entrevista à rede CNN, afirmou que se sentaria com os governos russo e ucraniano para um acordo.
"Se eu fosse presidente, eu resolveria essa guerra em um dia, em 24 horas. Eu me encontraria com Putin, me encontraria com Zelensky. Ambos têm fraquezas e ambos têm forças", disse.
📌 Afirmações semelhantes foram feitas nos meses seguintes:
-
Trump disse que sabia o que cada lado queria e afirmou durante a campanha eleitoral que iria acabar com a guerra em 24 horas.
-
Em julho de 2024, o embaixador da Rússia nas Nações Unidas, Vasily Nebenzya, descartou que Trump resolveria a "crise na Ucrânia" em apenas um dia.
-
Em março deste ano, o presidente americano foi questionado sobre a promessa. Em entrevista ao programa "Full Measure", ele afirmou que estava sendo "um pouco sarcástico" quando disse que resolveria a guerra em 24 horas.
-
🔎 Uriã Fancelli afirma que Trump vem adotando uma postura que contradiz a imagem de "grande negociador" que tenta vender. Segundo ele, o presidente americano está cedendo aos interesses russos.
- Como exemplo, Fancelli cita a declaração do secretário de Defesa dos EUA, Pete Hegseth, que descartou a possibilidade de a Ucrânia ingressar na Otan no longo prazo — uma demanda de Moscou.
- "Trump, pressionado a cumprir sua promessa de resolver a guerra em 24 horas, busca desesperadamente um acordo rápido para mostrar resultados políticos", afirma.
-
"O problema é que qualquer acordo acelerado tende a significar uma capitulação, uma concessão feita às pressas, que ignoraria os interesses da Ucrânia e acabaria recompensando o agressor."
🔎 Já Maurício Santoro destaca que o tempo mostrou que a resolução da guerra não seria tão simples quanto Trump defendia.
- Santoro diz que os objetivos de Rússia e Ucrânia são incompatíveis e que nenhum dos lados se mostra disposto a ceder.
- "A Ucrânia quer o território que perdeu desde o início da guerra, e Putin também quer manter aquilo que conquistou. Então, por onde se vai fazer algum tipo de concessão?", questiona.
-
"Curiosamente, a Rússia foi um dos poucos países a ter ficado fora do tarifaço. Trump poderia muito bem ter utilizado um aumento de tarifas para pressionar a Rússia a fazer algum tipo de concessão, mas ele optou por não fazer isso."
2. A influência de Putin
Putin disse que apoia ideia de um cessar-fogo com a Ucrânia, mas quer discutir condições — Foto: Maxim Shemetov/Reuters
Trump tem adotado posturas diferentes em relação a Putin e Zelensky. Enquanto o líder russo é elogiado e tratado como confiável, o presidente ucraniano é chamado de "ingrato" e "ditador".
📞 Putin e Trump conversaram por telefone nos últimos meses. Em fevereiro, após uma dessas chamadas, o presidente americano disse que o presidente russo queria a paz e defendeu o retorno da Rússia ao G7.
- Não é de agora que Trump vê Putin com bons olhos. Antes de ser eleito presidente, em 2015, Trump declarou que o russo era um "líder forte", a quem admirava.
- Já em 2022, afirmou que Putin tinha feito um "movimento genial" ao reconhecer a independência de territórios ucranianos invadidos durante a guerra. Disse ainda que o presidente russo atuava como pacificador.
- Em março deste ano, ele elogiou novamente Putin após uma conversa por telefone.
- Trump até elevou o tom contra a Rússia em alguns momentos, como ao ameaçar sanções caso um acordo não fosse fechado. Mas, até agora, tudo ficou na narrativa.
-
🔥 Em relação à Ucrânia, Trump tem adotado uma política de pressão. Ele condicionou a manutenção da ajuda americana a um acordo para a exploração de minérios e chegou a culpar Zelensky pela guerra.
- O ápice da crise foi no dia 28 de fevereiro, quando Trump recebeu Zelensky na Casa Branca. Os dois bateram boca diante de jornalistas.
- "Você tem que ser grato. Você não tem as cartas. Você está encurralado aí. Seu povo está morrendo. Você está ficando sem soldados", disse Trump.
- "Seu povo é muito corajoso. Mas ou vocês fazem um acordo, ou estamos fora. E, se estivermos fora, vocês vão ter de lutar."
- Nesta semana, Trump usou uma rede social para afirmar que Zelensky fez um péssimo trabalho ao "permitir" o início da guerra — embora a Ucrânia tenha sido invadida pela Rússia em fevereiro de 2022.
-
🔎 Para Uriã Fancelli, a Rússia tenta seduzir Trump com a ideia de que ele está prestes a fechar um acordo histórico que poderá exibir aos seus apoiadores.
- Segundo ele, as exigências feitas por Moscou são maximalistas, e Trump tem devolvido à Rússia parte do capital geopolítico que havia sido desmontado por Europa e EUA nos últimos três anos.
- "Putin, já ciente do perfil de Donald Trump, tenta manipulá-lo combinando elogios calculados, promessas vagas e uma narrativa feita sob medida para o imenso ego de Trump: a de que ele seria o único capaz de alcançar a grande paz", afirma.
-
"A estratégia é bastante clara. Putin elogia Trump, chama-o de estadista, encena trocas de prisioneiros como se fossem concessões inéditas, quando, na verdade, já ocorrem há anos. Tudo para alimentar a vaidade de um líder americano ávido por manchetes e prestígio."
🔎 Maurício Santoro diz que Trump tem mais dificuldade para lidar com Zelensky. Ele lembra que, no primeiro mandato, a Ucrânia foi o centro de denúncias que resultaram em um pedido de impeachment contra Trump.
- Santoro explica que, por ser um país democrático, a Ucrânia enfrenta maior pressão de sua população, o que dificulta concessões em negociações. Já na Rússia, por se tratar de um regime autoritário, um acordo poderia ser fechado com mais facilidade.
- "Acho que o cenário ideal para o Trump seria onde ele fizesse esse tipo de acordo de barganha diretamente com governantes autoritários", analisa.
-
"Na cabeça do Trump, o Putin é alguém com quem ele pode e quer fazer negócios."
3. Os desafios para a Ucrânia
Trump e Zelensky batem boca na Casa Branca — Foto: Brian Snyder/Reuters
Os Estados Unidos realizaram encontros com delegações da Ucrânia e da Rússia para tentar costurar uma trégua no conflito. Em março, o governo ucraniano anunciou que havia aceitado uma proposta de cessar-fogo imediato de 30 dias. No entanto, a Rússia fez mais exigências.
- Ainda em março, os EUA afirmaram que haviam conseguido fazer com que as partes interrompessem as agressões contra infraestruturas energéticas. Apesar disso, Ucrânia e Rússia se acusaram mutuamente de violar o tratado.
- Também houve o anúncio de um acordo sobre o fim das hostilidades no Mar Negro. A Rússia, no entanto, afirmou que os ataques só seriam interrompidos se houvesse a reintegração de alguns bancos russos ao sistema financeiro internacional.
-
💥 Em meio às conversas, a Ucrânia continua sendo bombardeada. Ataques russos nas últimas semanas atingiram áreas civis e provocaram dezenas de mortes. Em um dos casos, o país inteiro ficou sob alerta, e até a Polônia chegou a levantar aviões para proteger seu próprio espaço aéreo.
- No dia 4 de abril, um ataque com míssil russo matou pelo menos 18 pessoas, incluindo seis crianças, em uma área residencial em Kryvyi Rih. A cidade ucraniana é onde o presidente Zelensky nasceu.
- No domingo (13), a Rússia disparou dois mísseis contra a cidade ucraniana de Sumy. Pelo menos 34 pessoas morreram e 84 ficaram feridas.
- A Ucrânia também tem lançado drones contra a Rússia, mas os ataques costumam ter um potencial destrutivo limitado. Um bombardeio contra a cidade russa de Kursk, na segunda-feira (14), atingiu uma área residencial. Uma idosa morreu e outras nove pessoas ficaram feridas.
-
🫨 De maneira geral, a Ucrânia se encontra em um momento delicado para as negociações. Entre os principais entraves está a exigência de ceder territórios à Rússia, algo que considera inaceitável.
- Ao mesmo tempo, Zelensky insinua que os EUA têm adotado um posicionamento que beneficia os russos.
- Embora ainda tenha o apoio da Europa, os americanos estavam entre os pilares da resistência ucraniana no conflito.
-
🔎 Segundo Maurício Santoro, o impasse nas negociações reflete demandas antigas da Rússia, como a posse de territórios disputados há décadas e uma mudança de governo na Ucrânia.
- Santoro destaca que essas exigências colidem com a Constituição ucraniana, o que torna difícil qualquer avanço.
- "Ele [Putin] quer uma mudança de governo em Kiev. Quer um governo que seja pró-russo e que assuma um compromisso de que não vai ingressar na Otan e na União Europeia", diz.
-
"O que tá em jogo é a própria sobrevivência da Ucrânia como um estado independente. Quer dizer, não seria simplesmente ceder esses territórios e tudo ficaria bem com a Rússia. Os russos continuariam a pressionar."
🔎 Para Uriã Fancelli, as negociações que estão em andamento têm servido como cortina de fumaça para as exigências da Rússia.
- Segundo ele, os russos têm apostado em uma tática de negociar enquanto avançam pelo território do inimigo. Ou seja, para Fancelli, a Rússia usa a diplomacia como instrumento de guerra, não de paz.
- "Na prática, o que a Rússia busca é tempo, para reforçar suas posições no campo de batalha, desmoralizar os ucranianos, testar os limites do Ocidente e aprofundar fissuras dentro da Otan", diz.
-
"É impossível prever com precisão o futuro da Ucrânia neste momento. Tudo dependerá, em grande parte, da postura que os países europeus irão adotar, não apenas em relação à guerra, mas também à sua própria segurança coletiva."