DESPERTADOR ANIMAL
Aqui na rua de casa há vários moradores caninos e felinos. A propósito, embora moremos em uma rua de um único quarteirão, a mesma é bem eclética quanto aos moradores. Temos o escritório executivo de um famoso confeiteiro, de onde há um entra e sai de pessoas vestidas como chefes de cozinha e várias bandejas carregadas de doces, eis que a escola dele fica na rua do lado, a pouco menos de 100 metros de distância.
Temos ainda uma agência de publicidade e é bem fácil identificar quem trabalha lá, pois são todos jovens descolados, com aquela aparência de publicitários de filmes ou de séries de televisão. Mas nem só de glamour vive a nossa rua, eis que há também uma clínica que acredito seja de uma psicóloga ou terapeuta, eis que sempre há pessoas com lágrimas nos olhos ou retorcendo as mãos de forma nervosa, esperando que a profissional chegue para atendê-los.
Quando nos mudamos para cá, há mais de nove anos, a rua era marcadamente residência de idosos. De fato alguns ainda estão por aqui, mas outros tantos ou se mudaram ou deixaram realmente esse plano. Alguns fazem falta, enquanto outros, honestamente, nem um pouco. Temos também várias crianças, meninos e meninas que, em dias mais tranquilos, brincam no meio da rua de bola ou de pega-pega.
Toda diversidade, acredito, é representada aqui. Temos casais de todas as conformações, bem como aqueles que se tornaram casais depois de morarem vizinhos e até quem tenha deixado de sê-lo depois de muitos anos. A despeito da doida mistura que somos, grosso modo nos damos bem. Sempre há, é claro, aquele vizinho com o qual temos mais afinidade e um ou outro que não apreciamos tanto, mas, no momento, o saldo é positivo.
Uma coisa, registre-se, nesses anos todos, nunca deixou de ser uma constante nessa nossa ruazinha: os habitantes de quatro patas. É fato que muitos morreram nesse tempo, mas outros tantos chegaram, enchendo de alegria e de barulho a vizinhança. Aqui em casa mesmo, quando nos mudamos, éramos dois humanos e dois cães. No presente somos dois humanos, um cão e três gatas (intrometidos dirão que há também pássaros e peixes, mas isso é outra história, rs).
Há nove anos tínhamos o Trovão, um imenso cão branco, que ficava na janela que dava para rua e que, assim que nascia o sol dava um latido tão forte que me fazia pensar em trovões. Muitos anos depois, quando ele já estava doente e em seus derradeiros meses, descobri que se chamava Rogério. Seja como for, Rogério/Trovão me acordou cedo, mesmo em domingos e feriados, por bons anos.
Em um determinado momento, nosso cachorro Floquinho (que Deus o tenha), um poodle cinza, começou um estranho ritual, dirigindo-se toda santa madrugada ao quintal e, posicionado embaixo da janela do nosso quarto, punha-se a choramingar baixinho. Se adotássemos a estratégia de ignorar, a coisa ia aumentando de volume e para evitar problemas com os vizinhos, ou descíamos para dar uma bronca e força-lo a voltar a dormir, ou acabávamos levantando e iniciando o dia muito mais cedo do que seria normal.
Quando adotamos a primeira de nossas gatas descobrimos que os gatos possuem um costume muito chato de acordar seus donos nos primeiros raios do dia. Não sei se com todos é assim, mas notamos que o comportamento se repete sempre que são bebês e segue assim até perto de fazerem um ano. São longos meses nos quais andamos por aí com caras de zumbis, cochilando sempre que surge uma oportunidade. Depois, por Deus, isso passa.
Há coisa de um mês uma vizinha de muro adotou um filhote de cachorro. Vira-latas, meio cruza de Basset e sei lá o que, a criaturinha é muito fofa, parecida com um cachorro de desenho animado. O grande problema é que, mesmo não sendo eu a terapeuta do quarteirão, já pude identificar que ele sofre de algum trauma de separação, pois não suporta que suas donas, uma mãe e suas filhas crianças, saiam de casa. Isso porque ele não fica sozinho, eis que veio exatamente para ser companhia para outra cachorra.
Inegavelmente o bicho tem bons pulmões. Assim que a mulherada saí ele desata um choro sofrido, chegando a quase soluçar. O problema é que faz isso diariamente às 7 da manhã. Para quem dorme depois da uma, esse horário é considerado madrugada. A coisa todos não dura mais do que alguns minutos, mas é o suficiente para acabar com meu sono, interrompido antes do horário programado.
Quero crer que o tempo faça como que ele aceite melhor o fato de que todos os dias haverá momentos de quase solidão. Enquanto isso não acontece, estou eu aqui, debruçada sobre as teclas do computador, sem conseguir pensar em outra coisa senão um bom cochilo.
CINTHYA NUNES VIEIRA DA SILVA - Advogada na Silva Nunes Advogados Associados, professora universitária, membro da Academia Linense de Letras e cronista. São Paulo. - cinthyanvs@gmail.com