E AGORA, MINISTRO?

21 de julho de 2019 838

Ninguém deu um pio nas redes sociais contra a decisão do ministro Dias Toffoli de suspender investigações criminais com uso de dados do Coaf, Receita Federal e Banco Central sem autorização judicial.

Mas o controle do Coaf não foi uma das pautas das manifestações em defesa de Moro e da lava Jato? Não foi pela manutenção do Coaf na Justiça que só faltaram incendiar o Congresso? Não é ação das forças da corrupção para acabar com a lava jato?

Será que agora vale o devido processo legal, que o pastor Joaquim Falcão classificou em um festejado artigo como " uma doença. Inchaço. Patologia"? Será que o "processualismo" passa a valer agora, quando interessa a Flávio Bolsonaro e Fabrício Queiroz?

Edito para complementar: Toffoli está absolutamente correto. E sua atitude foi uma verdadeira tacada de mestre. As redes sociais robóticas de Carlucho têm que permanecer caladas.

Não há fome, Presidente? E os meninos que comem luz?

Ouvi, no carro, a magistral “Brejo da Cruz”, de Chico Buarque (1984), na excepcional apresentação de João Bosco. E lembrei-me de artigo que publiquei quatro anos antes, em (1980). Foi uma dessas coincidências que jamais poderei comprovar para afastar a suspeita de plágio, a não ser o lapso temporal. Foi uma bem elaborada matéria sobre o lumpemproletariado urbano. O título foi “O cidadão do 5º mundo” e uma das fontes foi o então apenas sociólogo Paulo Delgado, que viria a tornar-se um longevo deputado pelo PT.  Meu trabalho foi inspirado em uma série de fotografias produzidas por Jorge Couri, um sujeito iluminado, pessoal e profissionalmente, com o qual tive a felicidade de trabalhar nos Diários Associados de Juiz de Fora.

A música de Chico Buarque, absolutamente atual, desmente o presidente Jair Bolsonaro, que declarou à imprensa internacional, que não existe fome no Brasil. Sem o menor traço de rubor na cara-de-pau. Provavelmente pensava nos filés governamentais e legislativos com os quais sempre abasteceu a filharada. “Brejo da Cruz” inspirou excepcional artigo da então juíza Dora Martins, em 2012. Ela integrava a Associação Juízes para a Democracia e associou a música à cracolância em São Paulo.

Mas letra de Chico pode ter buscado inspiração no 18º Brumário de Luiz Bonaparte, capítulo V, que descreve o “lumpen proletariat” de Paris como uma sociedade benemerente bonapartista. De inspiração marxista, reunia os desajustados da sociedade, sob a chefia de um general, para a formação original de sua “sociedade 10 de dezembro” – base do apoio político do golpe de 1851, com a dissolução da Assembleia Nacional da 2ª República francesa.

Selecionei o público alvo de minha matéria na faixa de seres humanos sobre os quais Chico Buarque diria “que se disfarçam tão bem”. O “cidadão do 5º mundo” nega a própria existência pelos padrões da sociedade. Não nasce oficialmente porque não possui registro. E não morre porque não nasceu. Você pode passar por ele durante anos sem notar sua existência. Ele é, nos devaneios da “Escola de Frankfurt”, a base da tese da “descriminalização do crime”. É – no raciocínio de seus seguidores e no qual setores da esquerda brasileira parece se espelhar – um produto da sociedade, criado sob o jugo da violência estrutural de um sistema capitalista criminoso.

O “lumpen proletariat” bonapartista era composto por roués arruinados, degenerados, aventureiros, vagabundos, licenciados de tropa, ex-presidiários, fugitivos da prisão, escroques, saltimbancos, delinquentes, batedores de carteira, ladrões, jogadores, alcaguetes, donos de bordéis, carregadores, escrevinhadores, tocadores de realejo, trapeiros, afiadores, caldeireiros, mendigos – em uma palavra, toda essa massa informe, difusa e errante que os franceses chamam la bohème.

Chico Buarque diz que “A novidade é a criançada se alimentar de luz. Alucinados, os meninos vão ficando azuis e desencarnando lá no Brejo da Cruz. Eletrizados, eles cruzam os céus do Brasil. E, na rodoviária, assumem formas mil. Uns vendem fumo, tem uns que viram Jesus. Muito sanfoneiro, cego tocando blues. Uns têm saudade e dançam maracatus. Uns atiram pedra, Outros passeiam nus. Mas há milhões desses seres, que se disfarçam tão bem que ninguém pergunta de onde essa gente vem. São jardineiros, guardas-noturnos, casais. São passageiros, bombeiros e babás. Já nem se lembram que existe um Brejo da Cruz. Que eram crianças. E que comiam luz.

As cracolândias foram introduzidas como referência na canção de Chico Buarque pelo comovente artigo da juíza Dora Martins e “apareceram na mídia por conta do balé descompassado no qual escorregaram os poderes públicos. Chico Buarque fez a canção Brejo da Cruz, em 1984, há mais de vinte e cinco anos, e, já então, anunciava a dita novidade: “a criançada a se alimentar de luz, meninos alucinados ficando azuis, e desencarnando lá no brejo da cruz…” O Brasil está cheio de brejos da cruz, não mais só com meninos, se alimentando do cheiro da cola e de luz, mas agora com mulheres grávidas, jovens, homens e mulheres, também alucinados, sem esperança, em busca, incessante e continua, de mais uma pedra de crack.

Os usuários de crack, bem se sabe, compõem a parcela mais excluída dos excluídos desta sociedade brasileira que se quer moderna, em franco desenvolvimento, como cantam os homens da economia. E tão consumista. Sem volteios: a sociedade brasileira precisa reconhecer seus males e não apenas querer esconder esses “milhões de seres que não mais se disfarçam tão bem” e, que antes de desencarnarem, ficando azuis, nos apontam que, já existiam eles, sim, muito antes, e que eram crianças, e que “comiam luz” neste triste e brasileiro brejo da cruz.

CARLOS HENRIQUE ÂNGELO (BLOG DO CHA)