Lula tem sua melhor hora para fazer a reforma militar
"Não podemos esperar outra tentativa de golpe”, escreve a jornalista Tereza Cruvinel
A enxurrada de revelações sobre os planos golpistas de Bolsonaro e de militares de alta patente despertaram perplexidade e revolta mas, no fundo iluminado pela História, foi apenas mais do mesmo. Mais da tutela militar, essa ideia que se consolida a partir da República (1889), de que os militares são intérpretes superiores dos interesses do país, podendo usar da força para interferir na política, substituindo um povo certamente incapaz (aos olhos deles) de fazer escolhas certas.
É certo que desta vez não houve consenso a favor do golpe, e que os comandantes do Exército e da Aeronáutica resistiram (embora não tenham denunciado os golpistas e tolerado os acampamentos), ao passo que o da Marinha aderiu. Em verdade, foram quatro os generais que rechaçaram com firmeza a proposta de golpe e impediram qualquer consenso no Alto Comando do Exército: o atual Comandante, Thomas Paiva, Richard Nunes, Valério Stumpf e André Novais.
Houve então, digamos, uma expansão dos valores democráticos entre os militares mas o DNA da tutela, que se traduz em ímpetos golpistas, continua lá. Não desaparecerá com a punição dos conspiradores pela Justiça, e nem com futuras punições disciplinares, que no caso deviam chegar à expulsão. As forças já afastaram os investigados mas decidiram que punições disciplinares só virão no final do processo. Até lá, ficarão todos em casa recebendo o soldo.
A transição pactuada para encerrar a ditadura, controlada pelos próprios militares, garantiu a eles quatro áreas de autonomia que realimentam a cultura da tutela: a organização das escolas militares, a existência da inteligência militar, os julgamento pela Justiça Militar e o orçamento de Defesa. Isso foi tão importante quanto a garantia de não-punição dos que cometeram crimes durante a ditadura (lei da Anisitia).
Além destas regalias, a Constituinte ainda aprovou o artigo 142, que na interpretação deles faz das Forças Armadas o poder moderador. Dizia-se então, e continuou-se a dizer nos anos seguintes, que a correlação de forças não permitia “enquadrar” os militares e corrigir as anomalias acima citadas. Fernando Henrique fez aprovar duas leis complementares que não resolveram o problema.
O presidente Luiz Inacio Lula da Silva conseguiu uma convivência pacífica com eles nos seus oito primeiros anos. Fez concessões e os premiou com investimentos inéditos. Mas agora poderia não ter tomado posse, ou poderia ter sido derrubado em 8 de janeiro de 2023, se os golpes tentados tivessem dado certo.
Após o 8 de janeiro, Lula tirou do comando do Exército o general Arruda, que havia escolhido por critério de antiguidade, substituindo-o por Thomaz Paiva. Arruda insistia em nomear o ex-ajudante-de-ordens de Bolsonaro, Mauro Cid, para a chefia do Batalhão de Operações Terrestres de Goiânia. O mesmo que seria usado para invadir Brasília na quartelada planejada por Bolsonaro, e que estava subordinado ao general Estevam Teóphilo, um dos alvos da Operação Tempus Veritate. Reunido com Bolsonaro em 9 de dezembro, este general colocou-se à disposição com suas tropas. E, incrível, continuou no Comando de Operações Terrestres (COTER) durante todo o ano passado, integrando o Alto Comando.
Até aqui Lula optou pelos panos quentes. Vem mantendo com eles uma relação amigável, até generosa, preconizada por seu ministro da Defesa, José Múcio. A única iniciativa, ainda não aprovada, foi o projeto proibindo que militares disputem eleições, salvo se passarem para a reserva. Não se aprovou, por exemplo, a emenda da deputada Perpétua Almeida, determinando que passem à reserva também se quiserem ocupar cargos civis. Sabemos que Bolsonaro nomeou mais de seis mil militares para tais cargos, cooptando-os com salários dobrados
A conciliação é tanta que a operação de segunda-feira foi adiada até que general Teófilo passasse para a reserva, e assim não houvesse mais golpistas no Alto Comando.
Agora, porém, abre-se para Lula uma oportunidade talvez única de enfrentar a questão militar com segurança, fazendo as reformas necessárias à superação da cultura tutelar. O desgaste e o constrangimento das Forças Armadas são enormes. Estão fragilizadas pelas evidências da trama golpista.
Especialistas e estudiosos da questão me apontam as providências que seriam necessárias e sugerem que Lula poderia ter o apoio dos generais que discordaram do golpe.
1. Suprimir o artigo 142 da Constituição;
2. Alterar os currículos das academias e escolas militares;
3. Extinguir os serviços de inteligências das três forças, heranças da ditadura.
4. Extinguir a ABIN, sucedânea do SNI que herdou seus vícios.
Indo a cada ponto
Enquanto estiver na Constituição, o artigo 142 vai alimentar a ideia do poder moderador e justificar as GLOs. Recordado seu teor: “Art. 142. As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem.”
Pergunto à minha fonte acadêmica se, com a supressão do artigo 142, os chefes dos poderes civis não ficariam impedidos de contar com as Forças Armadas para enfrentar situações internas excepcionais, decretando operações de GLO. Ele explica que não. O artigo 136 permite ao presidente decretar o Estado de Defesa (ouvido o Conselho da República e o Conselho de Defesa Nacional), para enfrentar situações de desordem pública, instabilidade institucional e calamidades de grandes proporções. A intervenção federal pode ocorrer mesmo em áreas restritas, como ocorreu na segurança do Distrito Federal no 8 de janeiro.
Em relação às escolas militares, a reforma viria por alterações curriculares, elaboradas com a participação do MEC, que suprimissem toda ideia de tutela e incluíssem disciplinas fortalecendo valores como a democracia, o respeito aos direitos humanos e a justiça social com inclusão. Foi o que fez a Argentina. Eu acrescento que o combate ao racismo e à discriminação contra as mulheres (que têm pouco espaço em nossas Forças Armadas) poderiam entrar nestes currículos. Até aqui, este assunto foi anátema para os militares mas o momento agora talvez facilitasse o enfrentamento do assunto.
O terceiro ponto seria a extinção dos serviços de inteligência das três Armas, criados durante a ditadura, quando atuaram como parte do aparelho repressivo. Ações de inteligência militar só passariam a existir fora das fronteiras nacionais, buscando informações para a estratégia de defesa.
E, para completar, seria preciso acabar com a ABIN, a sucedânea do SNI que agora mesmo, nas revelações sobre o plano golpista, vimos ser usada para monitorar adversários e autoridades . Vimos no vídeo da reunião de 5/7/2022 o general Heleno afirmar que estava infiltrando agentes em campanhas eleitorais de concorrentes de Bolsonaro. Vimos o surgimento da ABIN paralela e o uso do software espião FirstMile.
As atividades de inteligências ficariam a cargo da Polícia Federal, que é aparelhada para isso. Quando tivesse necessidades específicas, o governo as demandaria através do GSI.
Mas Lula enfrentará este abacaxi? Os interlocutores duvidam. Primeiro, porque para isso ele precisaria remover Múcio, defensor ardoroso da política de conciliação. Segundo, porque Lula parece acreditar que tem o dom de converter ao bem, pelo diálogo, os que andam por outros caminhos. Depois, ele valoriza muito a política externa e acha que Forças Armadas bem equipadas e fortes contribuem para o fortalecimento do papel global do Brasil. Um conflito com elas agora poderia respingar na política externa que vai indo tão bem. Mas isso são interpretações.
No PT, há setores que cobram o enfrentamento da questão, como é o caso do ex-deputado José Genoíno: “Lula está tendo uma oportunidade talvez única de enfrentar esta questão. Espero que ele a aproveite para fazer a necessária reforma das Forças Armadas. Não podemos esperar outra tentativa de golpe”.
MAIS LIDAS
TRICA& FUTRICAS
Aposentadoria do INSS aos 59 anos traz mudanças importantes
Tabata fala em “nova força política” e diz que “caminhada só começou”
PGR pode denunciar Bolsonaro nos três inquéritos ainda este ano
A POLITICA COMO ELA é (POR : TEREZA CRUVINEL)
Tereza Cruvinel atua no jornalismo político desde 1980, com passagem por diferentes veículos. Entre 1986 e 2007, assinou a coluna “Panorama Político”, no Jornal O Globo, e foi comentarista da Globonews. Implantou a Empresa Brasil de Comunicação - EBC - e seu principal canal público, a TV Brasil, presidindo-a no período de 2007 a 2011. Encerrou o mandato e retornou ao colunismo político no Correio Braziliense (2012-2014). Atualmente, é comentarista da RedeTV e agora colunista associada ao Brasil 247; E colaboradora do site www.quenoticias.com.br