Microimposto: todos pagam muito menos e país arrecada muito mais
22 de outubro de 2019
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Governo pode arrecadar R$ 15 trilhões ao ano. Orçamento/2019, que não se consolida, é de míseros R$ 3.381 trilhões. "O país insiste em sofrer com os efeitos de um sistema tributário desvirtuado e antifuncional” - Flãvio Rocha
A Energisa me cobrou R$ 549,36 pelo consumo no mês de outubro. Embutidos nesse total estão 23,73% referentes a uma rubrica somente chamada de "tributos", que, imagino, sejam impostos em seus diversos tons de cinza: R$ 119,09. Acontece que sobre o total - você pode conferir em sua própria conta de energia - incidem os 20% de ICMS, equivalentes a R$ 100,34. Se você está seguindo o raciocínio irá observar que em uma conta de R$ 549,00, os impostos levam uma generosa fatia de R$ 219,43. Ou seja: sem contar outros penduricalhos absolutamente ilegais cobrados na conta de energia, eu pagaria R$ 329,93.
Esse valor seria ainda menor sem a cobrança de PIS/Pasep, Cofins e outras cobranças afins, se o país adotasse a proposta tributária que propõe a substituição de todos - absolutamente todos - os impostos, com os quais o governo nos achaca, por um microimposto de 0,1% sobre transações financeiras. Ou seja: sobre minha conta de energia, despida da cumplicidade governamental no achaque, de R$ 329,93 eu pagaria R$ 32,9 de imposto, seja lá o nome com que fosse batizado (CPMF não!). Lamentavelmente nenhuma das propostas da reforma fiscal segue esse modelo.
Se você está pensando que, assim, o governo iria quebrar, está redondamente enganado. Iria sobrar dinheiro nos cofres da União, estados e municípios. Estudos patrocinados pelo megaempresário Flávio Rocha, das lojas Riachuelo, indicam que o Brasil registrou movimentação financeira de R$ 1,5 quatrilhão (1.500 trilhões) em 2016. Se sobre esse valor incidisse 0,1%, a arrecadação de seria de espetaculares R$ 15 trilhões. É bom lembrar que a proposta orçamentária do governo para 2019 previa uma arrecadação de míseros R$ 3,381 trilhões, que parece não se confirmar, para desespero do governo.
Paulo Guedes, aliás, é francamente favorável à proposta, da qual infelizmente Bolsonaro não quer nem ouvir falar. É que a frustrada tentativa com a CPMF, da forma como foi apresentada (imposto sobre os cheques), acrescentou mais um item à arrecadação federal sem suprimir coisa alguma. O microimposto sobre transações financeiras iria acabar com o Imposto de Renda, IPI, ICMS, IPVA, ISS e muitos outros, de uma lista de 90 mordidas que os governos nos cobram. Acabar mesmo, não apenas mudar de nome como o tal Imposto sobre valor agregado - IVA.
Como não consegue arrecadar com essa infinidade de impostos, tributos e taxas, os técnicos governamentais ficam a estudar fórmulas mirabolantes para cobrar mais de quem ainda consegue pagar. O microimposto, no entanto, seria pago por todos, mesmo na economia informal, já que não há como evitar transações bancárias. Vale lembrar que o ICMS, principal item da arrecadação dos estados, entra primeiro na receita da união e está no orçamento federal. Já o ISS e o IPTU representam arrecadações pífias, que poderiam ser facilmente compensadas.
Leia o artigo de Flávio Rocha
Em março, um grupo do departamento de estudos bancários e financeiros da Universidade de Zurique apresentou um trabalho que sugeria a substituição de todos os impostos da Suíça por um microimposto, com alíquota de 0,1%. Estudos semelhantes estão sendo realizados em vários países onde a nova tecnologia bancária gera a possibilidade de adoção de bases tributárias que refletem à perfeição toda atividade econômica, formal ou informal. Esses países, segundo o Bank for International Settlements (BIS, uma espécie de Banco Central dos BCs), produzem volumes anuais de créditos bancários equivalentes a até 100 vezes o produto interno bruto (PIB) das nações, somadas.
O Brasil, com a maior base tributária do mundo, sobressai nesse grupo. Aqui, os créditos bancários anuais representam 180 vezes o PIB. O volume de transações bancárias no país é de 1,5 quatrilhão de reais, de acordo com dados de 2016 do BIS. Isso significa que um milésimo desse volume, recolhido num microimposto, seria suficiente para substituir todos os tributos meramente arrecadatórios nos três níveis da federação. Enquanto outro grupo de países precisaria de alíquota de até 1% para substituir esses impostos, o Brasil tem situação semelhante à da Suíça nesse quesito — uma alíquota de 0,1% seria suficiente.
Esse microimposto teria uma base tributária vinte vezes maior que a da CPMF (o antigo imposto do cheque) e 500 vezes maior que a base do imposto sobre valor agregado (IVA). O país também conta com um dos sistemas bancários mais sofisticados do mundo, tendo desenvolvido tecnologia própria, num processo contínuo que consome bilhões de reais em investimentos em informática. Vem sendo assim desde que foi preciso adaptar-se à hiperinflação da década de 80. Em vez de se aproveitar dessas condições vantajosas, no entanto, o Brasil insiste em sofrer com os efeitos de um sistema tributário tão desvirtuado e antifuncional que, ano após ano, recebe do Banco Mundial a avaliação de pior do mundo.
O fato de nossas bases tributárias tradicionais estarem totalmente em frangalhos deveria estimular os protagonistas do debate sobre a reforma tributária a pensar fora da caixinha. Considere-se que os noventa vorazes tributos brasileiros são cobrados quando a riqueza é auferida (renda), usufruída (consumo) ou estocada (patrimônio). Ora, tais bases estão absurdamente sobrecarregadas, a ponto de nosso sistema tributário ter perdido qualquer função de progressividade ou relação com a essencialidade do que se tributa. A norma é extrair o que for possível de cada agente econômico até a sua exaustão.
O imposto de renda é um exemplo dessa saturação. Chega-se à crueldade — não há outra palavra — de tributar um assalariado que ganha dois salários mínimos. O consumo é a base adotada pela maioria das propostas que tramitam no Congresso. Parece que os tributaristas preferem ignorar que o imposto sobre circulação de mercadorias e serviços (ICMS) é, de longe, o imposto mais sonegado. A propósito, lembro-me do que dizia o saudoso Mario Henrique Simonsen: “Imposto justo é aquele que o Estado consegue cobrar”. Além disso, a tributação do consumo não tolerará mais a menor sobrecarga adicional, sob pena de haver uma epidemia de informalidade. É notório que, quando a carga fiscal é exagerada, muitos agentes econômicos, tendo a própria sobrevivência ameaçada, preferem correr o risco de simplesmente deixar de pagar impostos.
A tributação do consumo é também a mais socialmente regressiva. Há uma correlação direta e evidente entre esse imposto e a desigualdade social. Não será preciso fazer muita conta para perceber a injustiça. Basta estimar quanto a tributação sobre um pacote de macarrão, por exemplo, representa para a renda de um executivo e para a de um operário. A verdade é que qualquer imposto sobre consumo pune a parcela da população cuja renda, oriunda do trabalho, é majoritariamente destinada às compras essenciais.
Por último, a terceira base, a tributação do patrimônio, que corresponde a modestos 2% do bolo tributário brasileiro, está também no limite da saturação. Aumente-se a alíquota e o capital migrará para um porto seguro fora do país.
A solução disruptiva é a tributação do fluxo. Para adotá-la, bastaria romper a espessa névoa de preconceitos que turva o debate. Quando os dogmas tributários foram forjados, a mercadoria era visível e o pagamento, invisível. Era mais fácil tributar os produtos do que os pagamentos. Em tempos remotos, quando alguém completava uma carga de milho e recebia três moedas de ouro, era muito mais fácil para o Fisco rastrear e tributar o milho do que as moedas, que poderiam ser escondidas e escapar do olhar do coletor de impostos.
Essa realidade se inverteu. Hoje, a mercadoria é invisível. Cadeias produtivas inteiras se desmaterializaram. Livros, revistas, softwares, música e filmes, por exemplo, perderam o suporte físico, mas o que se paga por eles é perfeitamente rastreável e, portanto, tributável.
Esse fato cria um novo paradigma. Não devemos tributar a riqueza quando ela é gerada, consumida ou estocada, usando bases tributárias do século passado. Isso não funciona mais, e a tendência inexorável é que piore, abrindo buracos cada vez maiores nas contas públicas. Devemos, isto sim, tributar a riqueza quando ela se move.
O Brasil tem tudo para inverter a equação: em vez de microbases gerando macroimpostos, é possível ter uma macrobase viabilizando um microimposto. Essa é a real revolução tributária que o país precisa e é capaz de fazer. O microimposto, se implantado gradualmente, pode em dois anos nos tirar da posição humilhante de pior sistema tributário para a de melhor — e apontar um caminho para o mundo.
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