Movimento espírita: cegueira, idolatria e desinformação

22 de fevereiro de 2018 720

Em 2007, a Associação Brasileira de Pedagogia Espírita lançou um número isolado do Jornal Mensagem, invocando a herança de Herculano Pires, para fazer uma crítica ao modismo então injetado no movimento espírita sobre as ditas crianças índigo e cristal. Demonstramos então que se tratava de um empreendimento comercial, de uma seita New Age, norte-americana, sem nenhuma base científica e que criava uma discriminação absurda entre as crianças, ao classificar algumas de índigo, outras de cristal e outras que seriam apenas normais. Nessa ocasião, Divaldo Franco estava lançando um livro sobre o tema – apoiando a moda. Nessa publicação, não mencionamos o nome de Divaldo e nem o seu livro sobre o assunto. Mas sofremos retaliações por causa do jornal, embora ninguém tenha apresentado um único argumento contra os vários que enumeramos.

Agora, nesses últimos dias, recebemos na ABPE inúmeras mensagens, pedindo um posicionamento nosso a respeito da entrevista coletiva dada por Divaldo Franco e Haroldo Dutra num congresso em Goiás. Participamos então de um texto coletivo a respeito e aprofundamos o assunto aqui no blog. Buscamos entretanto exercitar o espírito crítico com respeito humano e o discernimento equilibrado das coisas. Assim, antes de mais nada, temos de declarar que quando discordamos de uma pessoa ou fazemos uma crítica a posições ou ideias ditas por ela, isso não significa desrespeito ao ser humano.

 
 

A primeira coisa que devemos lamentar e fazer uma objeção firme é em relação à crescente partidarização que Divaldo tem assumido em suas declarações. Na citada entrevista, refere-se à república de Curitiba, comandada pelo “presidente Moro” (sic), “venerando juiz”… No mínimo, ele poderia se questionar como alguém pode ser venerando, se há inúmeras críticas de juristas internacionais e brasileiros quanto à evidente parcialidade e seletividade da “justiça” de Moro e de grande parte do judiciário no Brasil atual. Como pode uma liderança espírita desconsiderar tudo isso e assumir o discurso da massa de manobra? Lembramos ainda a recente homenagem de Divaldo a João Dória em São Paulo, causando enorme constrangimento a todas as pessoas esclarecidas politicamente, que na ocasião estavam indignadas com a ração humana, que o prefeito estava querendo dar aos moradores de rua.

Sabemos que o país está polarizado. Por isso mesmo, nossas palavras requerem prudência, argumentação e compromisso ético. Ora, em nossa opinião, Divaldo está exercendo sua imensa influência no movimento espírita para fortalecer posições retrógradas, anti-humanitárias e o faz sem qualquer argumentação, sem qualquer aprofundamento nas questões políticas e sociais, mas de maneira superficial, mística e leviana, como fez com a ideia das crianças índigo anos atrás.

Recentemente também saiu um desenho animado calcado numa palestra de Divaldo, em que ele conta uma história absurda em que supostos espíritos judeus e muçulmanos estariam promovendo cruéis obsessões em centros espíritas, semeando a discórdia entre nós, cristãos tão bondosos! Uma ideia discriminatória e falsa. Promove a intolerância religiosa e simplesmente não tem nada a ver. Por que judeus e muçulmanos estariam preocupados conosco? Em suma, uma fantasia de mau gosto.

Outra questão que nos espanta é a maneira como Divaldo, quanto fala sobre a chamada “ideologia de gênero”. E aqui vamos nos deter um pouco mais no assunto, porque não se trata apenas de uma questão política, mas também acadêmica.

Não existe “ideologia de gênero” – este é um termo criado por setores conservadores da Igreja Católica e depois adotado pelas Igrejas Evangélicas, para colocar várias coisas num mesmo saco e torná-las todas abomináveis e ameaçadoras.

Existe sim uma área de pesquisa no mundo que se chama “Estudos de Gênero” – que teve influência de Michel FoucaultSimone de Beauvoir e Judith Butler, que esteve recentemente no Brasil (e não tinha vindo falar sobre gênero) e quase foi linchada por fanáticos, que certamente jamais leram um livro dela.

Pois bem, os “Estudos de Gênero” se dedicam a procurar entender como se constitui a feminilidade e a masculinidade do ponto de vista social, se debruçam sobre questões de orientação sexual, hetero, homo, transsexualidade – ou seja, todos fenômenos humanos, que estão diariamente diante de nossos olhos. Podemos concordar com algumas dessas conclusões, discordar de outras, deixar em suspenso outras tantas. Esse olhar é muito recente na história e ainda estamos apalpando questões profundas e complexas – e em nosso ponto de vista espírita, não é possível ter plena compreensão delas sem a chave da reencarnação. Uma abordagem puramente materialista jamais vai dar conta do pleno entendimento do psiquismo humano. Mas estamos muito longe de ter gente reencarnacionista competente, fazendo pesquisa séria, para dialogar com pesquisadores com abordagens meramente sociológicas ou psicológicas. Então, nós espíritas, não temos ainda melhores respostas que os outros.

Mas dentro desse universo de questões ligadas a gênero e sexualidade há pontas de um lado e de outro.

Por exemplo, uma vantagem trazida por esse discurso contemporâneo é a busca de igualdade de direitos entre homens e mulheres (os Estudos de Gênero nascem com o feminismo e ainda estamos muito distantes de uma igualdade nesse sentido, basta ver os dados em relação à violência contra a mulher no Brasil), o chamado ao respeito à diversidade, ao respeito à dignidade de todos, incluindo os da comunidade LGBT, o entendimento de que todo ser humano tem o direito de exercitar sua sexualidade como bem entender, desde que não violente outro ser humano. Então, de um lado, temos o Papa Francisco que diz “quem sou eu para julgar?” e, do outro, temos líderes espíritas que jamais se referem às violências praticadas contra homossexuais e travestis, contra mulheres e crianças, contra negros e pobres. Ao contrário, adotam discursos em tudo semelhantes às lideranças mais retrógradas de outras religiões: discursos que lembram Malafaias e Felicianos.

Mas ao nos alinharmos entre aqueles que defendem os direitos humanos de todos e todas, não significa, por outro lado, adotar uma teoria e prática extremista como a proposta por exemplo por alguns na Suécia, de que quando nasce uma criança, nem se dar o nome nem se vestir de menino ou menina, deixando que mais tarde ele-ela decida… Ou ainda como se faz hoje nos Estados Unidos de realizar cirurgia de inversão de sexo, com crianças de 10, 12 anos.

Obviamente que esses extremos são absurdos, embora raros, e jamais foram propostos aqui no Brasil, pois que desrespeitam a maturação psíquica da criança ainda em desenvolvimento. E são coisas de países capitalistas e não comunistas, como Divaldo anunciou na entrevista.

Esses temas são muito complexos, mobilizam paixões de um lado e de outro e esperam ainda delicados e dedicados estudos para compreendermos melhor como se dá essa integração entre heranças reencarnatórias, influências do meio social, constituição familiar, fatores genéticos… Portanto, um comedimento nas análises é muito bem vindo.

Mas o que é preciso frisar sempre é o respeito a todos e todas, o combate a qualquer forma de discriminação e violência contra quem quer que seja e seria muito bom que seguíssemos Jesus, se nos dizemos cristãos – ele não condenou os corruptos, os ladrões e os que na sua época eram considerados sexualmente desviados – as únicas pessoas com as quais ele foi duro foi justamente com os religiosos hipócritas.

O que mais aborrece a espíritas conscientes é o fato de tantos outros espíritas comprarem cegamente o que líderes assim falam. Esse é o problema da idolatria, da falta de critério e de estudo e, sobretudo, da falta das diretrizes racionais que Kardec imprimiu ao espiritismo.

Se não mudarmos o rumo, já já seremos uma nova seita.