O julgamento de Lula e o mercado financeiro

29 de janeiro de 2018 848

Desde a segunda metade da década de 1970, Lula sempre se mostrou mais um homem de extrema capacidade de entendimento do ambiente político em que vivia e um hábil negociador do que um político radical de esquerda. Foi assim que construiu sua carreira sindical, fez nascer e crescer o PT e governou por dois mandatos com muito sucesso. Mas também cometeu erros e se equivocou muitas vezes. Entre seus maiores erros talvez esteja o de pensar que em algum momento por volta da metade da década de 2000 a elite do País o tenha aceitado, assim como teria aceitado o PT e várias de suas bandeiras de resgate da histórica dívida social com as camadas de baixo da nossa estratificação social.

Depois do susto inicial com a possibilidade de Lula se eleger em 2002, o ambiente político e econômico se acalmou, nenhuma transformação radical aconteceu – bem pelo contrário, na economia Lula seguiu o que vinha fazendo FHC –, nenhum preceito da ordem liberal foi atacado e o capitalismo brasileiro seguiu sua rota, distribuindo fartos rendimentos ao sistema financeiro e ao setor produtivo em geral, com algumas exceções. No entanto, havia algo que incomodava os poderosos, a política de redistribuição de renda, cujos símbolos maiores foram o crescimento real do salário mínimo e o Programa Bolsa Família. Não que tais ações fossem prejudiciais à acumulação de capital das empresas; exatamente o oposto, elas ganharam muito com o novo modelo de crescimento, agora com base na ampliação da classe média e na incorporação das famílias de renda mais baixa.

Logo, passada a incerteza sobre como seria um governo do PT – lembre-se dos discursos inflamados do passado sobre auditoria das dívidas interna e externa –, não havia razão para ter medo de Lula nem o Presidente precisava se preocupar com uma rejeição da elite, que era cada vez menor. Este ambiente de ganha-ganha e de distensão, com crescimento econômico, inflação controlada e contas externas em franca recuperação, criou a ilusão de que a histórica e visceral ojeriza da elite em relação a quem “veio de baixo” havia se desfeito, ou, no mínimo, estava muito diminuída. Pois não estava; estava somente adormecida, como que “jiboiando”, esperando a oportunidade para acordar e reagir com força.

Dito isto, do ponto de vista econômico – sem, obviamente, afastar o super fenômeno político – foi muito interessante ver a reação do mercado financeiro ao julgamento de Lula pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região na semana que passou. A despeito de a maioria dos agentes do mercado ter montado posições baseadas nas expectativas da condenação por unanimidade dos julgadores e, portanto, na inelegibilidade de Lula em 2018, à medida que os votos iam sendo lidos e se confirmava o acerto das apostas a Bolsa subia, a taxa de câmbio caía e o entusiasmo do mercado crescia. A quinta e a sexta feira seguintes ao julgamento da quarta feira (24 de janeiro) só confirmaram o movimento, inclusive com novas variáveis, como a queda dos juros futuros e a redução do chamado risco-país, uma medida de confiança do capital estrangeiro nos títulos brasileiros negociados no exterior. É oportuno lembrar que durante o Governo Lula o Brasil foi classificado como “grau de investimento” pelas agências internacionais de classificação de risco, mas esse era outro momento.

Como interpretar a reação do mercado? Há uma primeira resposta, de mais curto prazo. É o fato de que a decisão unânime diminui as chances de Lula concorrer, o que reduz a incerteza sobre o processo eleitoral e, portanto, reduz a volatilidade, variável muito delicada para o sistema financeiro. Com a diminuição da incerteza, as empresas destravam seus planos de investimento e isso ajuda a recuperar mais rapidamente a economia, castigada pela recessão de mais de dois anos.

Contudo há outras respostas, não tão de curto prazo e bem mais importantes. Afastar Lula significa diminuir as dúvidas sobre o andamento das reformas liberais dos que derrubaram Dilma e sobre o processo de entrega das riquezas do País ao capital estrangeiro; veja-se a aprovação da lei do “teto de gastos” e a rápida mudança do marco regulatório da exploração do petróleo. Não que tais apostas tenham que se efetivar imediatamente, além das que já se efetivaram, como a reforma trabalhista, porém se abre a porta para o futuro governo federal seguir a rota inaugurada com a posse de Temer, o frágil gerente dos interesses maiores. É isto que entusiasmou tanto “o mercado” e fez prever a entrada de mais capital estrangeiro, numa projeção de retomada do crescimento econômico e dos lucros.

Mas Lula e o PT não tinham proporcionado o mesmo nos anos gloriosos da metade da década de 2000? Não ocorreu a maior taxa média de expansão da economia das últimas décadas, com grande ampliação do mercado consumidor, aumento do emprego formal, inflação sob controle e melhora das contas externas, neste caso por influência do mercado internacional em alta? Por que então a possibilidade de afastar Lula traz entusiasmo ao mercado? Do ponto de vista estritamente econômico – o que é claramente limitado –, pode-se argumentar que apenas se estaria trocando um tipo de crescimento por outro. Com Lula e o PT um crescimento com incorporação das camadas de renda média e baixa, maior volume de produção e vendas de produtos mais populares, com margens de lucro menores. Um ganho pela quantidade, pela grande escala, nem por isso taxas de lucro menores. Na outra ponta, um modelo mais excludente, direcionado às camadas de alta renda, baseado menos na escala e mais nas margens de lucro sobre cada unidade vendida.

Os dois modelos são possíveis, se viabilizam economicamente e nenhum deles de antemão gera maior volume de lucros que o outro, que por fim é o que interessa às empresas. Por que então a preferência do mercado à hipótese de afastamento de Lula? Suponho que a resposta correta, apesar de mexer com os indicadores econômicos, passa menos pela discussão de economia e mais por outros ramos do conhecimento, como a política, a história, a sociologia e a antropologia. Passa pelo fato de que a elite econômica e social nunca aceitou Lula, o PT e a ascensão da base da pirâmide. Lula se entusiasmou tanto com o verdadeiro sucesso de seu Governo que se enganou com a ideia de que a elite tinha entendido e compactuado com o PT e com seus compromissos sociais. Foi apenas um pequeno intervalo de trégua numa longa história de exclusão.

(*)  Flávio Fligenspan é professor do Departamento de Economia e Relações Internacionais da UFRGS