Obrigado, Paulo Gustavo, homenageia Kakay

7 de maio de 2021 179

Todos nós temos um mecanismo de fuga que nos permite enfrentar os nossos momentos de desespero, de dor dilacerante. Nos últimos meses, o massacre frequente do noticiário sobre milhares de mortes por dia, sobre a falta de oxigenação para os doentes e de leito nos hospitais, de certa maneira, nos anestesiou. Ninguém suporta mais acompanhar a realidade.

É uma infinita angústia acompanhada de um medo e da falta de sonhos. Quando a pessoa deixa de sonhar e se vê obrigada a viver o caos diário, existe um risco real de embrutecimento dos sentimentos, até como um mecanismo de defesa. E a capacidade necessária de indignação começa a sentir, também, a falta do ar que impulsiona a resistência.

Quando se contam números de mortos sem conseguir identificá-los, sem dar os nomes às vítimas deste verdadeiro genocídio, há uma tendência das pessoas se afastarem da realidade nua e macabra para conviverem com a notícia. É como se a informação da quantidade de óbitos pudesse quase se dissociar das mortes em si, dos cadáveres, das dores da partida e do desespero das perdas.

Já não se levantam os olhos do livro, nem se interrompe a conversa sobre futebol para prestar atenção no anúncio de que morreram 3.215 pessoas somente hoje no Brasil. A informação de que chegamos a 411 mil óbitos vem para confirmar as previsões. Ainda assusta, um pouco, o prognóstico de que poderão ser 800 mil mortos em agosto. Assusta pelo número, pelo medo de ser alguém aqui da sala ou um parente próximo.

Na realidade, a não ser quando dentre os mortos anunciados está incluído um parente querido ou um amigo, a notícia compõe um quadro de horror diário degustado com uma xícara de café ou um copo de vinho.

A necessidade de permanecer vivo nos faz fechar os olhos e os ouvidos. Certa insensibilidade nos invade e nos domina momentaneamente para nos preservar. Recorro-me a Manuel Bandeira, no poema “Momento num Café”:

De repente, como um raio que tenta romper o círculo invisível de giz que serve de aparato para não enlouquecermos, nós nos pegamos perplexos e emocionados com a partida prematura do grande gênio do humor, o ator Paulo Gustavo. Como mostrar a morte de uma pessoa que está radiante, alegre, gargalhando em todas as filmagens? A imagem dele não combina com dor, com tristeza, com sofrimento. É preciso encontrar uma forma artística de mostrar o humor inteligente e escancarado que nos tira da mesmice que virou a vida.

As notícias sobre o desastre sanitário dividem o país com informações de uma CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) instalada para, exatamente, descobrir os responsáveis por mortes como essa. Os amigos dele perguntam o óbvio: como morrer aos 42 anos se já existe vacina para o vírus? E a dúvida sobre o que teria acontecido se esse governo assassino tivesse comprado a vacina quando foi oferecida em junho de 2020: teria o Paulo Gustavo conseguido se vacinar?

 

 

E a notícia da morte vai ficando real com a informação de que ele tinha revelado o medo de não ver os filhos crescerem. Com os fatos que vêm à tona sobre a generosidade do grande coração que ele tinha, as diversas doações anônimas que fazia e a solidariedade com todos os que trabalharam com ele. O seu lado humano dá um rosto para a morte. Logo ele, que fazia o isolamento social, que pedia a vacina, que usava máscara e respeitava a ciência. Um homem que priorizava a alegria, o coletivo, o amor. É simbólico: uma pessoa que viveu para dar alegria tem, na sua trágica morte, uma mensagem de alerta mostrando que as mortes são reais, que esse momento não é um filme de terror, que é a tal realidade pura, nua e crua. Lembro-me de Rainer Maria Rilke:

Neste infeliz país, no mesmo dia da morte de Paulo, temos que ouvir o desvairado do presidente da República atacar a China, nossa maior fornecedora de insumos da vacina, acusando levianamente o país e sugerindo que o vírus foi criado em laboratório, “numa verdadeira guerra química, bacteriológica e radiológica”. Muito grave! Essa bravata irresponsável pode resultar em um isolamento ainda maior do Brasil. É uma estratégia vulgar para fazer uma cortina de fumaça e tapar os fatos da CPI. E, pela milésima vez, desdenhar da dor do brasileiro, ameaçar enfrentar o Judiciário e impor, por decreto, a proibição de medidas de restrição impostas pelo governadores. O mesmo show de horror, a mesma vulgaridade, a mesma leviandade.

Que a tristeza dessa morte de um ser iluminado, como era o grande humorista, nos dê esperança e força para renovar o enfrentamento do ambiente de guerra alimentado por esse presidente irresponsável. Em homenagem a um Brasil que já foi feliz, representado por essa figura carismática e envolvente, vamos apoiar a CPI, o impeachment, a tentativa de abrir um processo criminal no Supremo, o afastamento pelo TSE (Tribunal Superior Eleitoral), enfim, vamos apoiar a vida, a alegria e a esperança. O Brasil só poderá ser feliz de novo quando a vacina e os cuidados impostos pela ciência tiverem vencido o vírus. E, para vencermos, é necessário derrotar o governo da morte, da falta de empatia, da empáfia que só os muito ignorantes conseguem ter.

Quem dedicou a vida a trazer luz, humor e muita alegria, fazendo dessa imagem leve a sua marca, a sua cara, que opere o milagre de, com sua morte, nos trazer também de volta a capacidade de indignação e de resistência. A falta de um rosto nas milhares de mortes diárias estava nos mantendo catatônicos.

A melhor maneira de homenagear aquele que se foi é enfrentando o que o levou. Os que cultuam a morte, que desprezam a dor e desconhecem a solidariedade podem ser vencidos com humor, poesia, literatura e responsabilidade no acatamento da ciência. Saudando meu velho e querido Leão de Formosa, no poema “Sonetilha Existencial”:

Fonte: PODER360