Os sofrimentos do jovem universitário

18 de dezembro de 2017 873

Um rapaz pernambucano viralizou nas redes sociais com um texto de formatura sobre os "sofridos" anos da universidade. O assunto é destaque nos portais de notícia, foi louvado pelos inteligentinhos como "melhor texto de formatura de todos os tempos" e suscitou debates sobre "o que estamos fazendo com nossos meninos universitários".

Agradeci a Zeus, Odin e Hórus por mais uma demonstração prática de nossa indigência intelectual e de como estamos nutrindo uma geração incapaz de lidar com as questões mais corriqueiras da existência.

A imprensa nacional - agora pautada pelas redes sociais - prefere contrariar Millôr Fernandes e ampliar a voz dos idiotas. Ou dos espertinhos, como parece ser o caso, já que o rapaz em questão demonstra ter mais vocação para a publicidade que para o direito. Não aquela publicidade vencedora de Washington Olivetto, mas a contemporânea, constrangedora, que atende pelo neologismo de "lacradora" e se faz com palavrões, frases baratas e sentimentos idem.

Gosto de analisar discursos. As palavras são muito reveladoras. Fiz algumas observações sobre o texto do recém-formado.
 

1. “Passados seis fucking anos e acabou essa desgraça". O palavrão em inglês no meio da frase permite "causar" logo de saída. Gera empatia com os cansados da mesma faixa etária. Chamar o passaporte para o futuro de "desgraça" diz muito sobre a personalidade do autor.
2. "A faculdade começou de uma maneira maravilhosa, estava empolgado com um novo ambiente, novos professores, novas amizades. Pobre iludido era eu". Já diria o Buda: a fonte do sofrimento é a expectativa. Iludido o estudante estava mesmo. O problema nunca foi a Faculdade Damas da Instrução Cristã, onde o ingênuo se desencantou. O imbróglio foi a doce ilusão criada. Talvez o rapaz em questão tenha imaginado que fazer um curso universitário se resumia a conhecer gente nova e desfrutar de um belo ambiente, como num filme de sessão da tarde. Nas folgas, quem sabe, estudar um pouco. Não muito, pois a mente cansa rápido. Ou talvez - em sua ingenuidade - acreditasse que sua jornada de estudos se encerrara com a conclusão do ensino médio.
3. "Foram-se os anos e eu já estava surtando com assuntos acumulados, vários trabalhos para entregar, provas cujo único objetivo era foder com a minha vida social e desgastar meus neurônios, sem falar na demora de colocar a nota no sistema, né?". Que momento, senhores: a descoberta de que provas não têm o objetivo de avaliar o aprendizado, mas de extinguir a vida social dessa criançada de neurônios precocemente fatigados. Trabalhos, provas, tudo tão cansativo e desgastante. Quanto à queixa sobre a demora do lançamento das notas no sistema, o futuro advogado em breve será apresentado a uma das maravilhas da vida real: a morosidade da Justiça brasileira. Logo descobrirá que ser um bom advogado exige estudo permanente e consome horas de árduo trabalho. Costuma desgastar bastante os neurônios.
4. "Jesus, eu já não estava mais aguentando, pisar na faculdade no fim do curso era um tormento, eu olhava a cara dos professores e lia em suas testas "atura ou surta". Meus colegas me davam raiva (principalmente aqueles que ao fazer uma pergunta na aula dão uma palestra. Nunca seja esse tipo de pessoa!), todos os dias eu olhava para aquele lugar e dizia: não dá mais". Já consigo visualizar essa jovem criatura num tribunal, enxergando na testa do meritíssimo senhor juiz a frase "Atura ou surta". Ou revirando os olhinhos diante da longa argumentação do advogado da outra parte. Temo por ele. Vai passar muita raiva na vida. Melhor começar a tratar a ansiedade. Na vida profissional, surtar é opção perigosa.
5. "E para completar, no último ano, ainda tive que estudar para a maldita prova da OAB e entregar um TCC". Realmente, um sofrimento inenarrável. Um Trabalho de Conclusão de Curso é uma crueldade moderna que deveria ser denunciada a organizações como Human Rights Watch. E a OAB? Notificada por tortura de vulneráveis. Elementar, minha cara Luislinda.
6. "Aos meus inimigos, gostaria de dizer que acabou, estou formado e pronto para meter o famoso processinho". Com 23 anos já tem inimigos? Deve ter batido o recorde de Alexandre, o Grande. Vamos pôr na cota da idade essa percepção exagerada da própria importância. O mesmo vale para "meter processinho".
7. "E como diria um filósofo contemporâneo cujo nome eu não me lembro, "não estudo para ser chamado de doutor, estudo para ser chamado de rico". Cada um faz o que quer da própria vida. Desejo, sinceramente, que tenha sucesso em seu objetivo de ser rico, afinal estudou para isso. Espero, apenas, que quando os dólares estiverem jorrando em sua carteira, ele tenha tempo para ver no estudo a oportunidade de enriquecimento pessoal, de crescimento intelectual e de aprimoramento dos sentimentos.

Esse episódio me lembrou de três personalidades que respeito profundamente. o escritor Oscar Wilde, o professor Alexandre Romariz e o filósofo Diógenes de Sínope. Comecemos por este último, que estava posto em sossego ao sol quando surgiu Alexandre, o Grande, e, no auge de sua juventude conquistadora, disse ao filósofo que lhe pedisse o que quisesse. "Não me tires o que não me podes dar", teria sido a resposta. É que, na posição em que se encontrava, Alexandre impedia a luz do sol de chegar ao filósofo. Uma lição à onipotência juvenil.

Felizmente, Alexandre - que havia sido educado por Aristóteles - calou a risada de seus incultos soldados com a frase: "Se eu não fosse Alexandre, queria ser Diógenes". Nos dias de hoje, as redes sociais estão povoadas pelos soldados de Alexandre.

Já meu amigo Romariz, professor da Universidade de Brasília, é autor de um comentário excelente, endereçado aos seus alunos que transformam em tragédia a rotina universitária. "Sua avaliação em uma disciplina de curso superior não é uma medida de quem você é, de que tipo de cidadão você é, nem do que você potencialmente alcançará no futuro (inclusive no próprio campo de estudo da disciplina). Tudo verdade. Mas é, salvo alguns casos patológicos, resultado de um processo claro, aberto e de metodologia antecipadamente conhecida de avaliação em uma área específica. Um eventual fracasso é, fundamentalmente, um resultado de sua atuação. Não é culpa do "sistema", nem do universo, nem do professor(a), mas sua. Aceite este fato. Não foi a última prova, ou a questão 2. Foi o resultado de quatro meses de trabalho. Identifique sua fraqueza e procure superá-la. Ou avalie se isto vale a pena. Mas não se apegue a desculpas".

Por fim, a sabedoria irônica de uma frase de Wilde: "Não sou jovem o suficiente para saber todas as coisas".

Aristóteles, Diógenes e Wilde fazem falta em nosso país, onde milhares de pessoas adultas defendem atestados de despreparo para a vida. Nutrem uma geração que - salvo raras exceções - estreia na existência julgando que o mundo existe para servi-la e lhe deve loas ao imenso talento nato. 

Mimados por pais que os julgam excepcionais, tornam-se criaturas incapazes de lidar com o fracasso ou com as próprias escolhas. Confundem o pensamento independente com grosseria e se mostram vergonhosamente impacientes para ouvir os outros, pois são adeptas do autocentrismo.

Empatia e gratidão são raros nesta geração que desconhece o valor dos gigantes sobre cujos ombros subiu a fim de ver mais longe.

Dói-me estar aqui, a escrever platitudes. Só o faço porque entre nós há muitos incapazes de fazer a simples conexão entre vitórias e preparação prévia, que exige sacrifício e desgaste.

Dói-me que este este estado de coisas seja um trabalho coletivo: começa na família que cria o monstrinho, prossegue com o círculo mais próximo que aplaude, estende-se pela mídia que (unicamente por causa da audiência) divulga e amplia, e se consolida nas patéticas tentativas de minimizar as críticas (ah, gente, era só uma brincadeira, né? Não vamos problematizar isso. Mais bom humor, por favor). Bem, comigo não funciona esta última técnica: enquanto imperatriz da minha mente e adjacências problematizo o que achar necessário. Tudo pode e deve ser discutido, de preferência com argumentos e não com clichês e frases repetitivas.

Aos que enaltecem a demonstração cabal de má educação do estudante de Pernambuco, tomando-a por bem humorada e hiperbólica, meus sinceros pêsames. O convite inusitado só empolgou a claque que tem os mesmos ideais minúsculos do autor. Junto-me à voz do presidente da OAB-PE, que em um texto delicadíssimo aconselhou o recém-formado a não exercer o Direito.

Mesmo quanto à Publicidade, tenho cá minhas dúvidas. Passado o efeito inicial, começam a surgir as vozes dos que não compraram o peixe mal embalado no convite. E se é necessário que os amigos do estudante venham a público "explicar a mensagem" aos que a interpretaram de forma muito diferente da intenção do emissor, é sinal de que ela falhou fragorosamente. Confundir irreverência com rudeza é erro grave em publicidade.

Olhando todo o cenário - entre o espanto e o lamento - constato: estamos condenados a ser colônia até o dia em que descobrirmos que a elegância é valor precioso e que não existe almoço grátis.

(Texto de Sônia Zaghetto)