Policiais vendem cocaína ao PCC e voltam à ativa: “Provas anuladas”
Como desdobramento de uma decisão judicial, a Polícia Civil de São Paulo determinou a reintegração de três agentes que estavam afastados sob a acusação de apreender 400 quilos de cocaína do Primeiro Comando da Capital (PCC) e revender a droga à facção por R$ 5 milhões. Os investigadores Artur Oliveira Dalsin, Marcelo Inácio Vasconcelos Silva e Lucas Valente vão reassumir suas funções no Departamento de Polícia Judiciária do Interior em Santos (Deinter 6), no litoral paulista.
Os três agentes foram presos pela Polícia Federal (PF) quando atuavam na Delegacia de Combate a Entorpecentes do Deinter 6. De acordo com as investigações, os policiais prenderam três traficantes do PCC em abril de 2022, em Cubatão (SP). Os bandidos estavam com 400 quilos da droga, que seria enviada à Europa em meio a uma carga de balas e pirulitos.
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No entanto, os investigadores apresentaram na delegacia apenas 26 quilos da cocaína, que pertencia a Vinicyus Soares dos Santos, conhecido como Evoque ou Europeu, integrante do PCC. A PF descobriu o desvio a partir de conversas encontradas no celular do advogado de Europeu, João Manoel Armôa Junior, apreendido na Operação Diamante, referente a outra investigação.
O conteúdo do celular indicava que “os policiais civis Artur Oliveira Dalsin, Marcelo Inácio Vasconcelos da Silva e Lucas Valente subtraíram, mantiveram em depósito e renegociaram grande parte dela com o traficante proprietário da droga (cerca de 400 kg de cocaína), por meio do advogado João Manoel Armôa Junior e Thainara Santos de Paula, ao preço de R$ 5.000.000,00 (cinco milhões de reais), sendo que João Manoel reteve 10% (dez por cento) desse valor a título de ‘honorários’ após tratativas levadas a efeito via mensagens de WhatsApp”.
O valor foi repassado aos policiais por Thainara de Paula, estagiária e assistente de Armôa Junior, e pelo traficante Panchovilla, indicado por Europeu para concretizar a negociação. “O valor teria sido requisitado pelo advogado ao traficante de nome Panchovilla e o pagamento aos policiais realizado, de forma parcelada, por meio de Thainara Santos de Paula, que figura como ‘braço direito’ do advogado João Manoel”, apontou o desembargador federal Maurício Kato, da 5ª Turma do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, na análise de um pedido de habeas corpus impetrado pela defesa dos policiais.
Thainara de Paula foi indicada por Armôa Junior devido a uma viagem programada pelo advogado durante as negociações entre os traficantes e os policiais. “O que acontece é o seguinte, amigão, eu tô indo viajar hoje pro Marrocos. Eu te expliquei, eu tenho meu braço direito no escritório. Tu vai me passando aqui, é tudo com ela. É uma menina de confiança. Mas eu vou esperar todos os honorários aqui no meu escritório no centro, tá? Ela tem a chave, 24 horas, pode vir aqui. Eu vou te passar o contato dela. E eu preciso que você me dê uma programação, cara. Tão me cobrando. Você me fala uma programação dentro do que eu te falei”, diz Armôa Junior a Panchovilla, nas conversas interceptadas.
Em outra mensagem, de acordo com o MPF, o advogado informa ao agente Artur Oliveira Dalsin que a assistente vai entregar o dinheiro da venda das drogas. “Boa tarde, amigo! Amanhã vou ter um documento pra te entregar, tá? Só que assim, ó! Como eu não estou aí e não é questão de eu não confiar em você, eu confio muito em você, só que a menina que trabalha comigo, ela conhece muito o Mark, né? Que além de meu amigo é meu cliente do escritório, se tiver alguma coisa que pegar lá, ela tem a certeza de que está entregando certo, vai com o Mark lá, por favor, tá? Mas é mais ou menos umas… final de tarde, tá? Ou final de tarde ou no outro dia de manhã, sem falta”, diz.
Artur Dalsin e Lucas Valente foram acusados pelo Ministério Público Federal (MPF) pelos crimes de tráfico transnacional de drogas, associação para tráfico, corrupção passiva, peculato e associação criminosa.
Destruição de provas
A denúncia apresentada pelo Ministério Público Federal (MPF) alega ainda que os três agentes também teriam atuado para atrapalhar outras investigações envolvendo integrantes da facção. “Há evidências da existência de esquema estruturado, em que os referidos policiais desempenham suas funções com vistas a localizar carregamento de drogas, não para cumprirem seus deveres, mas com o intuito de praticarem também tráfico de drogas, obtendo vultosas quantias ilicitamente. E não somente. Os elementos colhidos demonstraram concretamente a atuação dos policiais aqui envolvidos na alteração/destruição de provas relacionadas a outros casos, com o objetivo de favorecer o crime organizado em troca do recebimento de dinheiro”, diz o MPF.
Em uma das conversas, Panchovilla pede a Armôa Junior que acione os investigadores para que eles ajudem dois traficantes identificados como TH e Bispo. “Doutor, papo reto, os caras foram pra arrumar quina, arrumaram dez vezes mais. Deixa os moleque quieto, certo? E ajuda os moleque no processo, no inquérito. O amigo tem residência fixa, tem a empresa dele, nunca chegou notificação, intimação de nada ou qual que é a parada? Os caras tão querendo extorquir nós, nós vamos começar a entender de outra forma”, ameaça o traficante.
O advogado responde que os policiais estavam dispostos a ajudar, ainda que o boletim de ocorrência no caso mencionado fosse de responsabilidade de outra equipe. “Não, amigo, você não está entendendo. Já existia esse inquérito. É de outra equipe, só que eles falaram que vão ajudar. Mas eu, pra matar isso aí como advogado, preciso ver o que aconteceu, tá com eles lá, ir lá, ser ouvido e matar isso aí. Não existe rasgar papel mais. B.O. eletrônico. A investigação tá lá. Então nós temos que fazer bonitinho o negócio. Tô fazendo de um jeito pro negócio acabar, entendeu?”, explica.
Armôa Junior e Artur Oliveira Dalsin marcaram então um encontro. Na troca de mensagens, o agente demonstra preocupação com o local da reunião. “Tá, doutor. Vê num lugar aí fechado, mais tranquilo, entendeu? Não muito aberto pra, sei lá… dar oportunidade de alguém, sei lá, fotografar, enfim, entendeu? Por favor”, pediu. Depois do encontro, segundo o MPF, Dalsin envia ao advogado o número do boletim de ocorrência contra os dois traficantes.
O investigador Lucas Valente também aparece nas conversas com o advogado. “Diálogos revelados pela Operação Diamante entre os investigados João Manoel Armôa Junior e Lucas Valente corroboram a afirmação de que os policiais civis alvos desta representação, associados a outros criminosos, vêm interferindo em investigações, com destruição de provas”, diz o MPF.
Algumas mensagens indicam que Valente negociou com Armôa Junior a troca de um celular apreendido com outro traficante. “Doutor, sem problemas, doutor. A gente tá aqui pra se ajudar, tá bom? Aí vê aí, se der pra amanhã de manhã, aí o senhor vê o melhor horário, tá? Ou se precisar eu também vou, não tem problema, vou no escritório do senhor lá e a gente resolve, tá bom?”, diz Valente.
“Os diálogos, e tudo mais que foi apurado até o momento, dão conta de que os policiais civis aqui investigados possuem contatos com outros integrantes da Polícia Civil, com quem eliminam provas produzidas em investigações em troca de recebimento de vantagem ilícita. E é seguro afirmar, pelo teor dos diálogos, que isso ocorre de forma corriqueira durante o exercício de suas funções”, aponta o MPF.
Provas anuladas
A reviravolta no caso envolvendo a venda de 400 quilos de cocaína ao PCC aconteceu com a decisão do desembargador federal Maurício Kato em um pedido de habeas corpus apresentado pela defesa de Armôa Junior. O magistrado anulou as provas obtidas a partir da apreensão dos celulares do advogado, inclusive os elementos que apontavam o envolvimento de Artur Dalsin, Lucas Valente e Marcelo Vasconcelos Silva com a facção.
O desembargador alegou que as provas foram obtidas de forma ilegal, sem um mandado judicial para a revista pessoal do advogado, apenas para busca e apreensão em seu escritório. Armôa Junior foi revistado no posto policial da PF em um shopping de Santos, quando acompanhava o traficante Vinicyus Soares, o Europeu, que ia retirar seu passaporte recém-emitido. Na ocasião, foi cumprido um mandado de prisão contra o integrante do PCC.
“A busca pessoal, sem mandado judicial, só pode ocorrer nas hipóteses em que haja fundada suspeita de que o agente esteja na posse de arma proibida ou objetos ou papéis que constituam corpo de delito ou quando a medida for determinada no curso de busca domiciliar. No caso, não há relato dos policiais sobre fundada suspeita para legitimar a busca pessoal no paciente fora do local onde foi determinada a busca e apreensão”, afirmou o desembargador.
“A desobediência a essas regras e condições legais para a busca pessoal, sem mandado judicial, resulta na ilicitude das provas obtidas em decorrência da medida, bem como das demais provas que dela decorrerem em relação de causalidade”, disse. Com a decisão, as provas contra os três agentes da Polícia Civil de São Paulo foram anuladas, permitindo que eles voltassem à ativa.