Quem seremos depois de Gaza?
Este artigo foi publicado originalmente em junho, em The Ideas Letter, um projeto da Open Society Foundations. Leia aqui o texto em inglês. No dia 8 de outubro, Israel e Hamas anunciaram um acordo para iniciar o processo de paz, com a libertação de reféns e prisioneiros dos dois lados. Segundo as estimativas mais recentes, mais de 65 mil pessoas morreram na Faixa de Gaza.
Tradução de Isa Mara Lando.
Em março de 1988, o historiador israelense Yehuda Elkana, sobrevivente de Auschwitz, publicou um artigo no jornal Haaretz sobre “a necessidade de esquecer”. No texto, ele dizia que, embora conversasse frequentemente sobre o Holocausto com seus quatro filhos, contando a eles o que viveu no campo de concentração, recusava-se a acompanhá-los em visitas a Yad Vashem, o museu do Holocausto em Jerusalém. Dizia também que relutou em acompanhar, em 1961, o julgamento de Adolf Eichmann, militar nazista que organizou o morticínio, e se opôs ao julgamento de John Demjanjuk, que fora guarda no campo de extermínio de Sobibor. Havia um motivo para isso: Elkana achava que a memória do Holocausto havia sido cooptada para fins destrutivos; que vinha sendo utilizada maldosamente para insuflar o ódio e a violência contra o povo palestino.
Ao publicar o artigo naquele momento – em meio à Primeira Intifada, pouco depois de virem à tona imagens de soldados israelenses espancando palestinos indefesos –, o historiador talvez tivesse a esperança de que ainda havia tempo para Israel mudar de rumo. Argumentou que, “se o Holocausto não tivesse penetrado tão profundamente na consciência nacional”, o conflito entre judeus e palestinos não teria gerado tantos atos de terrorismo e violência. Conjecturou que o processo de paz na região talvez não tivesse se estagnado. Para Elkana, em 1988, chegara finalmente o momento de o povo judeu abandonar a ideia de que “o mundo inteiro está contra nós, e somos eternas vítimas”.
Embora o resto do mundo pudesse, é claro, continuar rememorando e discutindo o Holocausto, os israelenses precisavam esquecer: “Hoje não vejo uma tarefa política e educacional mais importante para os líderes desta nação do que se posicionar do lado da vida, dedicar-se à criação do nosso futuro, e não se ocupar, de manhã até a noite, com símbolos, cerimônias e lições do Holocausto.” A democracia, alertou Elkana, morto em 2012, está em risco quando “a memória dos mortos participa ativamente do processo democrático” – quando a política se torna um caminho para uma vingança interminável.
O artigo foi uma tentativa de impedir que seu país continuasse seguindo um caminho de violência injustificável, alimentada por uma dor e um pânico existenciais. Nos últimos 37 anos, a mensagem do historiador foi relembrada ocasionalmente, junto a outros apelos pela reconfiguração da memória do Holocausto. De certa forma, ele estava à frente do seu tempo, mas também atrás – talvez já visse no horizonte os contornos da época atual, ou talvez não ousasse imaginar até que ponto as coisas ainda iam piorar.
O escritor e crítico indiano Pankaj Mishra diz que a mensagem de Elkana chegou tarde demais. As negociações de paz entre Israel e Palestina foram interrompidas pouco depois da publicação do artigo, e a extrema direita israelense passou a descrever esse processo diplomático como um “prólogo para o aniquilamento judaico”, sugerindo um outro Holocausto iminente. Com seu novo livro, The World After Gaza: A History – uma impressionante análise do tempo presente, ainda sem tradução para o português –, Mishra se une ao pequeno mas crescente grupo de intelectuais que, como Elkana, buscam resgatar as lições liberais e humanistas do Holocausto para impedir que deem margem a impulsos vingativos. Se o colapso moral representado pelo Holocausto marcou o início de uma nova era histórica, a destruição de Gaza, agora, inaugurou outra.
Na visão de Mishra, a aniquilação dos palestinos expôs a hipocrisia moral do Ocidente para uma nova geração de pessoas que, compreensivelmente, não se satisfazem com os eufemismos e as explicações cínicas para a matança. A guerra de Gaza, segundo o escritor, marca “uma ruptura final na história moral do mundo”, o fim de uma era “em que o Holocausto era uma referência universal para um colapso calamitoso da moralidade humana”.
A mesma convicção de que entramos em uma nova e assustadora era permeia Being Jewish After the Destruction of Gaza: A Reckoning (“Ser judeu após a destruição de Gaza: Um acerto de contas”, em tradução livre), novo livro de Peter Beinart, o mais proeminente intelectual da esquerda judaica nos Estados Unidos. O título antecipa a principal tese do autor: depois da devastação de Gaza, a experiência de ser judeu foi transformada, porque passou a ser inseparável da violência perpetrada pelo Estado israelense. Beinart diz ter a esperança de que “um dia veremos a aniquilação de Gaza como um ponto de virada na história judaica” (está implícito, porém não dito, que esse acontecimento já marca um ponto de virada na história palestina). Depois desse momento, os judeus não podem mais alegar serem “as vítimas permanentes da história”.
Os dois livros foram escritos em estilos diferentes, para públicos diferentes – a prosa de Beinart é cheia de referências bíblicas e endereçada a leitores judeus, enquanto o texto de Mishra oferece uma introdução ao sionismo para quem não tem familiaridade com o assunto. Os dois autores, no entanto, assumem a mesma tarefa: enfrentar uma visão da história judaica que gira em torno do Holocausto. Mishra e Beinart conclamam seus leitores a refletir sobre como essa história será inevitavelmente transformada após Gaza e como podemos construir um futuro verdadeiramente livre.
Os dois situam Gaza como o novo “marco fundador” (foundational past) do nosso tempo, para usar uma expressão de Alon Confino, historiador cultural israelense. No Ocidente, o Holocausto foi, de certa forma, o marco fundador do século XX; antes disso, havia sido a Revolução Francesa. Esses eventos definiram suas épocas porque, segundo Confino, encarnaram “um novum histórico que serve como uma régua moral e histórica, como uma medida do que é ser humano”. Representaram, respectivamente, o auge da aspiração humana e o grau de sua depravação. Agora, Mishra e Beinart argumentam que a devastação de Gaza levou a humanidade a um novo patamar de degradação. A violência israelense, observa Beinart, equivalia em certo momento a uma sala de aula inteira de crianças palestinas sendo mortas todos os dias. Os efeitos históricos e geopolíticos dessa catástrofe, segundo ele, serão fundamentalmente diferentes de tudo o que os antecedeu.
Mas e se os dois autores estiverem errados? E se o mundo pós-Gaza não for tão diferente assim daquele com o qual estamos habituados? E se as condições desse mundo não forem definidas por Gaza, mas por algum outro cataclismo que ainda está por vir? E se este momento não sinalizar uma virada, um novo despertar moral, mas apenas um pontinho histórico num mundo de devastações cada vez piores? Essa possibilidade, real e inquietante, é a mais aterrorizante que os dois livros obrigam os leitores a considerar.
Tanto Mishra quanto Beinart narram suas próprias histórias de desilusão com Israel. O primeiro relata que, ao crescer na Índia nos anos 1970, “sentia afinidade” pela história e a literatura judaicas e até tinha uma foto do general israelense Moshe Dayan na parede do quarto. Naquela época, e ainda hoje, nacionalistas hindus admiravam os sionistas por terem “vencido a corrida e se tornado uma nação musculosa”. Embora de início não soubesse “quase nada” sobre a Segunda Guerra, Mishra via Israel “como uma redenção para as vítimas do Holocausto, e uma garantia inquebrantável contra sua repetição”. Ao travar contato com alguns estudantes palestinos, no entanto, o escritor percebeu que as coisas talvez não fossem bem assim. Mudou a cabeça de vez quando visitou Israel e Cisjordânia em 2008, constatando, in loco, a opressão aos palestinos. Mishra diz que, naquele momento, “sentiu-se inescapavelmente implicado no sofrimento” do povo palestino.
Já a desilusão vivida por Beinart começou na Cidade do Cabo, na África do Sul, de onde vem sua família. Ele diz que, ao visitar o país na infãncia e na adolescência, conheceu a injustiça racial do Apartheid e ouviu que aquilo era “necessário” para garantir a segurança dos brancos. “Quando cheguei à idade adulta, essa história desmoronou”, ele escreve. “O exército, que tanto havia assustado os brancos, se dispersou assim que os sul-africanos negros puderam se expressar por meio dos seus votos, em vez das armas.” Para Beinart, conceder às pessoas o direito ao voto – direito que é negado aos palestinos nas eleições israelenses – é um dos melhores caminhos para a paz. O fim do Apartheid, na sua visão, é um precedente esperançoso para o futuro de Israel e Palestina: na África do Sul, afinal, os mitos de excepcionalismo usados para justificar a supremacia branca ruíram sob o peso de suas próprias mentiras. Beinart diz acreditar em um mundo no qual os palestinos deslocados durante e após 1948 possam voltar para suas casas, e em que os israelenses deslocados após o 7 de outubro possam fazer o mesmo. Não se arrisca a sugerir o que deveria ser feito caso essas “casas” sejam, na verdade, a mesma.
Embora os dois livros tentem situar seus leitores no mundo assustador “pós-Gaza”, fica a impressão de que seu público, na verdade, são os leitores de um futuro próximo – aqueles que olharão para trás e verão nesses textos uma evidência de que alguém pelo menos disse alguma coisa, de que as pessoas se manifestaram contra a eliminação das vidas e das terras palestinas, e algumas até ousaram imaginar um futuro alternativo. (Em seu livro mais recente, One day, everyone will have always been against this – “Algum dia, todo mundo terá sempre sido contra isso” –, o romancista canadense-egípcio Omar El Akkad se dirige explicitamente a esses leitores. Seu título é uma tentativa de anular, por antecipação, qualquer omissão moral que ainda esteja por vir.)
Mishra pede aos seus leitores que olhem “para além da encarnação atual de Israel” e examinem “a condição de impotência e marginalidade que o sionismo originalmente buscava corrigir – uma condição mais comum nas histórias da Ásia e da África do que na da Europa e da América do Norte, e ainda dolorosamente não resolvida.” Há esperança para o mundo pós-Gaza, diz Mishra, porque ainda existem pessoas corajosas o bastante para se manifestar contra a violência israelense e a cumplicidade do Ocidente. Beinart, por sua vez, sugere que uma vertente mais antiga do “sionismo cultural” – que valorizava a vida e a cultura judaicas, mas rejeitava a ideia de um Estado judeu – poderia ser resgatada como alternativa às formas mais nacionalistas e militarizadas do sionismo.
Nenhuma dessas obras tem propostas satisfatórias sobre como chegar a um mundo justo pós-Gaza, mas esse não é seu objetivo. Em vez disso, anunciam a chegada de uma nova era, na qual o Holocausto não é mais o buraco negro moral em torno do qual o mundo gira. Outros pensadores expressaram recentemente essa mesma visão, pedindo uma reavaliação da memória do Holocausto após o 7 de outubro de 2023. “O privilégio ambíguo de ser um sofredor exemplar […] se perde quando os papéis de algoz e vítima são, na melhor das hipóteses, confundidos, e na pior, invertidos”, escreveu o historiador Martin Jay em um ensaio no Journal of Genocide Research no início deste ano. “A triste verdade é que, por várias gerações futuras, a expressão ‘nunca mais’ será usada para se referir tanto à limpeza étnica de Israel na Cisjordânia e à sua guerra em Gaza quanto ao Holocausto.”
Marianne Hirsch, cuja obra pioneira sobre a “pós-memória” definiu toda uma geração de estudos sobre o Holocausto, questionou as implicações da sua própria pesquisa em um ensaio na revista online Public Books, no ano passado. “Será que as estruturas de lembrança que nosso trabalho destacou também alimentaram o medo existencial do retorno do Holocausto, tal como estamos testemunhando agora?”, ela pergunta, em tom autocrítico. Aqueles que hoje soam o alarme do antissemitismo nos campi universitários chegaram à idade adulta “justamente quando os estudos sobre o Holocausto e o trauma estavam se desenvolvendo”, afirmou. “De que forma esse pânico atual remete à memória marcada pelo trauma que alguns de nós, na área, talvez tenhamos estimulado?”
Tanto Mishra quanto Beinart defendem o fim dessa memória marcada pelo trauma do Holocausto. É interessante notar que Beinart mal menciona o Holocausto em seu livro – uma das poucas vezes em que o faz é para enfatizar que esse acontecimento não deve ser comparado ao 7 de outubro, porque hoje os judeus têm “supremacia legal” sobre seus agressores. Com notável moderação, Beinart protege a memória do Holocausto de novas distorções e manipulações, e propõe acabar com a “evasão moral” e a “falsa inocência” da vida judaica moderna, que tenta sempre “camuflar a dominação como autodefesa”.
Sionistas pioneiros como Dayan, Zeev Jabotinsky – fundador do movimento juvenil Betar – e Hans Kohn eram mais sinceros quanto à natureza dos projetos que defendiam, definindo a violência dos palestinos como uma forma de revolta anticolonial. (Jabotinsky referiu-se explicitamente aos israelenses como “colonizadores” e aos palestinos como “nativos.”) Em 1902, Theodor Herzl, fundador do sionismo político moderno, escreveu numa carta ao político britânico Cecil Rhodes que o sionismo era “algo colonial”.
“É difícil falar com tanta franqueza hoje em dia”, diz Beinart. Aliás, está ficando muito difícil falar qualquer coisa.
Como será o mundo pós-Gaza? E seremos capazes de reconhecê-lo quando ele chegar, se é que vai chegar? Pelos testemunhos, fotografias e imagens de satélite que chegaram às nossas telas até agora, temos apenas uma noção mínima do que se passou: paisagens áridas, casas bombardeadas, corpos sob escombros, milhares de desaparecidos. Thomas Friedman, colunista do New York Times, afirmou que, no dia em que a guerra em Gaza realmente acabar, os jornalistas irão até lá e poderão, enfim, expor ao mundo os horrores sofridos pelos palestinos: “E quando isso ocorrer, será um dia muito ruim para Israel, e um dia muito ruim para os judeus de todo o mundo, porque as cenas serão horríveis.”
Mas as cenas já são tão horríveis e abundantes (recém-nascidos sem comida nem remédios, pais abraçados aos corpos ensacados de seus filhos, os famélicos, os não enterrados, os vivos que sabem que em breve poderão morrer) que nenhuma outra prova deveria ser necessária. Só agora, passado tanto tempo desde o início da guerra, com dezenas de milhares de mortos, os aliados fiéis de Israel concluíram que é hora de agir? Se esse é o ponto a partir do qual a comunidade internacional começa a tomar uma atitude, estamos em maus lençóis. A resposta que se esboçou até agora é tímida demais diante da gravidade dos fatos.
Ao afirmarem com convicção que o mundo pós-Gaza será fundamentalmente diferente daquele que conhecemos, Mishra e Beinart transmitem uma esperança tênue. Mishra pergunta se algum dia poderemos nos libertar das “narrativas históricas maniqueístas” que há tanto tempo nos aprisionam e abandonar “a estranha busca pela inocência” – embora, ao formular essas ideias apenas como perguntas, ele pareça um tanto cético quanto à possibilidade real de isso acontecer. Beinart, por sua vez, reafirma sua crença de que a mudança virá para os palestinos assim como veio para os negros da África do Sul.
Queremos acreditar que eles estão certos – que um dia olharemos para este tempo presente e o veremos como o marco de uma mudança histórica decisiva e incontestável, um momento em que o massacre dos inocentes motivou grandes mudanças legais e políticas. Mas, embora haja alguns sinais de que isso possa acontecer – alguns juristas, por exemplo, têm defendido que o sistema legal seja reconstruído do zero –, há muito mais indícios apontando na direção contrária. O primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu, ainda não foi dissuadido da ideia de destruir, esvaziar e reurbanizar a Faixa de Gaza. Como escreveu o advogado israelense de direitos humanos Michael Sfard, em artigo no Haaretz, estamos “ficando sem palavras” para descrever as atrocidades contra os palestinos. A fome, as deportações e os assassinatos em massa são atos flagrantemente ilegais, que violam leis nacionais e internacionais. No entanto, continuam ocorrendo, impulsionados pela sede de poder e a crença na vitimização e no excepcionalismo judeu.
Ninguém ouviu o apelo de Yehuda Elkana em 1988. Como era de se esperar, o historiador foi duramente criticado por questionar a centralidade do Holocausto na vida israelense. Mesmo prevendo essa reação, ele achou importante defender o esquecimento, questionar se a memória histórica pode algum dia ser uma força libertadora e tentar criar as condições para imaginar um futuro diferente. Ainda não sabemos como será o mundo pós-Gaza, nem se o reconheceremos dessa forma. Mas, como nos lembram Mishra e Beinart, ainda podemos aceitar o desafio de Elkana e “nos posicionar ao lado da vida”.