Riscos e impasses na política de crédito para a agricultura familiar
Até o início da década de 1990 não havia no Brasil nenhum tipo de política pública específica voltada para o apoio do setor familiar de nossa agricultura. Na verdade, não existia o próprio conceito de agricultura familiar. Os produtores desse grupo social eram considerados “mini-produtores” para efeito de enquadramento no Manual de Crédito Rural (MCR). Com isso, além de disputarem os recursos governamentais com as demais categorias, eles eram obrigados a seguir as mesmas regras bancárias que um grande agricultor para obter um financiamento rural. Tal realidade começou a mudar com a criação do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (PRONAF).
O PRONAF foi instituído através do Decreto Presidencial n.º 1.946, de 28 de junho de 1996, com a finalidade de apoiar o desenvolvimento rural, tendo como fundamento o fortalecimento da agricultura familiar como segmento gerador de emprego e renda. Nestes termos, sua missão fundamental seria combater as desigualdades sociais e regionais que marcaram as políticas estatais tradicionais voltadas para estimular a modernização da agricultura brasileira, que sempre apoiaram preferencialmente os médios e grandes estabelecimentos agropecuários ligados ao setor patronal exportador.
Seguindo recomendações de frentes diversas, o PRONAF começou estruturado em múltiplos eixos de ação, mas terminou focalizando sua energia na oferta de crédito rural barato, com taxas de juros que variam atualmente de 0,5% a 5,5% ao ano. O seu público, por sua vez, está estimado em 4,4 milhões de unidades familiares, envolvendo desde o setor mais pobre e os assentados da reforma agrária, até a parcela mais capitalizada da categoria. Hoje, o programa é reconhecido como a principal política pública de fomento à agricultura familiar em operação no país.
Do ponto de vista da evolução dos contratos e dos recursos aplicados, o PRONAF pode ser encarado como um caso de sucesso. E não é para menos. Nos seus primeiros 20 anos de existência, de 1996 a 2016, o programa realizou 28,7 milhões de operações de crédito e aplicou R$ 189,3 bilhões. É preciso destacar, porém, que desde 2014, quando alcançou seu recorde em aplicações (R$ 24,7 bilhões), o mesmo vem registrando algumas quedas nos montantes emprestados. Apesar disso, em 2017, foram efetuados 1,2 milhões de contratos, totalizando R$ 21,6 bilhões aplicados em operações de custeio e investimento agropecuário.
As oscilações recentes nos volumes de recursos aplicados pelo PRONAF são preocupantes, especialmente no contexto de “desmonte” das principais políticas públicas de apoio à agricultura familiar vivenciado no Brasil desde 2016. Todavia, mesmo diante dos riscos iminentes de retrocessos, deve-se lembrar que ele tem recebido diversas críticas ao longo de sua trajetória, as quais vão muito além do aumento ou diminuição de seu orçamento. Tais críticas têm se concentrado na desigualdade persistente verificada na distribuição dos recursos do programa e nas contradições do modelo de agricultura incentivado pelo crédito rural ofertado em condições especiais.
De fato, apesar dos avanços registrados, o modelo de distribuição dos recursos do PRONAF ainda está distante de ser o ideal. De acordo com dados do Branco Central (BACEN), do montante de dinheiro aplicado nos 20 anos iniciais do programa (1996-2016), algo em torno de 74% foi direcionado para as regiões Sul e Sudeste. Já a região Nordeste, que abriga em seu território metade dos 4,4 milhões de estabelecimentos familiares do país, obteve apenas 15% dos recursos desembolsados no período. Esta característica é especialmente preocupante, pois sinaliza um quadro favorável à manutenção das desigualdades regionais ao invés de diminuí-las.
A elevada desigualdade na distribuição dos recursos do PRONAF tem sido um tema recorrente em estudos acadêmicos e está presente também na agenda política de muitos parlamentares. Há inclusive um Projeto de Lei em tramitação no Senado (PLS nº 8, de 2012), de autoria do senador Ciro Nogueira (PP-PI), que propõe que os recursos do programa sejam distribuídos proporcionalmente ao número de estabelecimentos familiares existentes em cada estado, a fim de tentar garantir maior equidade na aplicação dos recursos federais em favor do segmento (https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/104090). A proposta, infelizmente, ainda não saiu do papel e tudo indica que não será aprovada. Enquanto isso, o problema apontado se mantém inalterado e piora a cada ano. Em 2017, por exemplo, dos R$ 21,6 bilhões emprestados, 56% foi para a região Sul e 11% para Minas Gerais. Ou seja, apenas quatro estados da federação concentraram 67% dos recursos desembolsados pela referida política pública, colocando em dúvida o seu caráter “nacional”.
Outro conjunto de críticas dirigidas ao PRONAF refere-se à timidez das mudanças que a aplicação dos seus recursos tem provocado nas estruturas produtivas do setor rural. No Nordeste, que concentra a parcela mais pobre da agricultura familiar do Brasil, o programa tem se concentrado em financiar a pecuária extensiva via microcrédito e tem contribuído relativamente pouco para a disseminação de tecnologias sociais de convivência com o clima semiárido. Por outro lado, nos estados da região Sul, onde se concentra o foco de suas ações em termos de volumes de recursos aplicados, a maior parte do crédito tem sido usada para reforçar o modelo produtivista de modernização da agricultura e a especialização produtiva dos agricultores familiares, principalmente em soja e milho.
Em contraposição ao apoio preferencial do PRONAF às commodities agrícolas como a soja e o milho, que receberam 56% do crédito de custeio do programa em 2014, iniciativas inovadoras voltadas a diversificar a produção de alimentos e a promover sistemas agrícolas ambientalmente mais sustentáveis têm sido marginalizadas. Para ilustrar, basta dizer que a linha de financiamento chamada PRONAF Agroecologia, criada em 2005, realizou até 2017 aproximadamente 2 mil contratos e aplicou R$ 30 milhões, representando um montante inexpressivo (0,02%) diante dos R$ 192 bilhões emprestados no mesmo intervalo de tempo. Esses dados indicam, assim, que o desejável “esverdeamento” do programa é um sonho ambicioso com chances remotas de se concretizar frente à lógica de modernização prevalecente na aplicação do crédito rural.
Note-se que os erros e acertos do modelo de desenvolvimento incentivado pelo crédito do PRONAF são pouco conhecidos no presente. A última avaliação nacional do programa, objetivando aferir em campo os impactos econômicos, sociais e ambientais dos seus recursos aplicados, foi realizada em 2001/2002, pela Fundação de Economia de Campinas (FECAMP). Essa avaliação, que investigou a situação de centenas de agricultores familiares beneficiados e não-beneficiados pelo crédito, forneceu subsídios importantes que depois contribuíram para aprimorar o programa em diversos aspectos, a exemplo da abertura dos financiamentos para as atividades rurais não-agrícolas. Depois dela, entretanto, novas pesquisas de abrangência nacional não foram realizadas, com exceção de estudos com indicadores agregados, que não conseguem captar a complexidade da realidade estudada.
As lacunas deixadas pela falta de avaliação, inclusive, parece que começam a incomodar setores do governo federal ligados à operacionalização do PRONAF. Um prova disso é que em maio de 2016 foi realizada em Brasília, na sede do INCRA, a “Oficina PRONAF”. O evento, que contou com a presença de especialistas de várias regiões do país e representantes dos movimentos sociais do campo, tinha o objetivo de desenhar o escopo de uma nova pesquisa nacional sobre o programa para tentar medir os reais efeitos do crédito rural subsidiado na sustentabilidade da agricultura familiar. A proposta, contudo, foi interrompida precocemente com a cassação do mandato da presidente Dilma Rousseff e depois sepultada com a extinção do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA).
Essa descontinuidade deixou um grande vazio, pois sem as evidências de estudos sistematizados sobre as ações realizadas torna-se complicado justificar novos caminhos para corrigir os rumos do modelo produtivista seguido até então.
Portanto, fica evidente que a conjuntura atual enseja muitos desafios para os movimentos sociais rurais que advogam a paternidade do PRONAF. Naturalmente, deve-se lutar em todas às frentes para manter e proteger o orçamento do programa, o que é uma tarefa nada trivial no momento. Mas essa luta não pode se resumir a preocupação costumeira com o “sobe e desce dos contratos” e/ou a busca por mais crédito para “fazer mais do mesmo”! O foco de qualquer agenda reformista deve priorizar o equacionamento dos impasses envolvidos na distribuição e nas contradições socioambientais do estilo de agricultura apoiado pelos fundos públicos. A questão é que isso não foi feito na fase de calmaria vivenciada até poucos anos atrás, tornando-se mais difícil diante da ascensão das forças políticas conservadoras ao comando do Estado brasileiro e do aparente imobilismo do sindicalismo rural.
(*) Pesquisador Associado do GEPAD. As opiniões emitidas nesta coluna são de responsabilidade individual do autor. E-mail: joaciraquino@yahoo.com.br
(Foto: Tamires Kopp/MDA)