‘Séculos de descobertas são comparados a opiniões. Vivemos um ataque ao conhecimento’, diz reitora da UFCSPA
Luís Eduardo Gomes
“A gente não imaginava que ia precisar defender a universidade dessa forma”. É assim que a Lucia Campos Pellanda, reitora da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA), descreve o contexto em que se viu envolvida nos últimos meses. Um contexto de audiências e reuniões em que ela e os demais reitores de universidades e institutos federais do Brasil precisam demonstrar que a sociedade brasileira tem muito a perder caso o governo leve adiante a política de cortes orçamentários, ao mesmo tempo em que precisam rebater todo o tipo de notícias falsas contra as instituições que circulam nas redes sociais. “Acho que faz parte de um movimento que começou já há algum tempo no mundo, é global, de anti-intelectualismo e anti-conhecimento. Hoje, séculos de descobertas científicas têm sido equiparados à opinião de alguém”.
Especialista em Pediatria e doutora em Cardiologia, Lucia Pellanda é professora da UFCSPA desde 2004 e reitora da universidade desde 2017, com mandato até 2021. Antiga Faculdade Católica de Medicina de Porto Alegre e depois, ao ser federalizada em 1980, Fundação Faculdade Federal de Ciências Médicas de Porto Alegre (FFFCMPA), a instituição se transformou em universidade em janeiro de 2008, passando a se chamar UFCSPA. Atualmente, é a única instituição de ensino federal especializada em ciências da Saúde, contando com 5.340 alunos em 16 cursos de graduação e de pós-graduação. Professores e alunos prestam atendimento à população em diversos locais de Porto Alegre, como a Santa Casa de Misericórdia, o Grupo Hospitalar Conceição, o Instituto de Cardiologia e o Hospital Materno Infantil Presidente Vargas.
Pellanda diz que, para ela, parecia óbvio o impacto positivo que as universidades têm na sociedade, o que faz com que o cenário atual também seja uma lição sobre a necessidade de as instituições aprimorarem o diálogo com a população. “Eu acho que a gente tem que aprender a dialogar com a sociedade. São coisas que, nas últimas décadas, a gente vem melhorando muito, mas agora sentimos a necessidade de melhorar mais ainda, de fazer realmente um diálogo franco com a sociedade. A gente tem que melhorar a divulgação do que se faz aqui com uma linguagem que seja mais acessível para as pessoas entenderem a importância dos projetos de pesquisa, dos projetos nas comunidades, projetos de extensão”, diz.
No entanto, em um momento em que as universidades públicas são comparadas ao ensino superior privado, ela destaca que é preciso também deixar claro que a contribuição das federais tem que ser mensurada para além de uma análise meramente financeira. “A gente tem que defender muito veementemente a questão de que a lógica do lucro não se aplica às universidades públicas”, diz.
Confira a seguir a íntegra da entrevista com a reitora da UFCSPA, Lucia Pellanda.
Sul21 – Como está a situação do bloqueio de verbas. O que foi passado às universidades na questão dos cortes?
Lucia Pellanda: A gente tem muita preocupação em relação a isso. O que a gente acha é que realmente a sociedade precisa entender a nossa importância e ajudar a nos defender, porque agora é uma questão de diálogo. A gente está apostando muito no diálogo e isso está acontecendo. Acho que, no último mês, recebemos muito apoio. E, principalmente, dos parlamentares se darem conta da importância das universidades, uma coisa que para nós parecia tão óbvio que a gente não fazia esforço para mostrar. Por isso que surgiu essa questão do Congresso de pressionar dentro daquele dinheiro da Lava Jato para se liberar recursos especificamente para as universidades, o que seria em torno de R$ 2 bilhões. O presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), recebeu todos os reitores das universidades gaúchas, isso foi bem interessante, porque foi um movimento da nossa Assembleia Legislativa que conseguiu essa audiência com o presidente da Câmara e com o presidente do Senado e foi ali que ele nos disse que o Congresso iria pressionar para que esse dinheiro volte para a educação. Acho que estamos ganhando uma série de apoios que antes desse bloqueio a gente não tinha. Houve uma mobilização muito grande da sociedade em defesa da educação, porque essa pauta transcende qualquer outra posição. É uma pauta que interessa para todo o País, tanto é que é uma frente suprapartidária. Claro que ela não existe isoladamente das outras pautas que afetam a sociedade brasileira, mas a gente acredita que a educação é a solução para os problemas e não mais um problema. Então, com isso as pessoas começaram a nos apoiar. Houve uma série de audiências em câmaras de vereadores de cidades que têm campi universitários. Os vereadores avaliam com muito mais propriedade o impacto da universidade para a economia local, por exemplo. Tem cidade que quebra se não tiver mais a universidade, que não é responsável apenas pela pesquisa que ajuda os agricultores locais, é responsável pelo impacto econômico mesmo, comércio, tudo isso.
Sul21 – As universidades federais de cidades como Santa Maria e Pelotas têm orçamentos parecidos ou maiores que as próprias prefeituras. Não é o caso aqui de Porto Alegre, mas também não é tão distante. Os orçamentos da UFRGS e da UFCSPA somados (R$ 1,97 bi) representam cerca de um quarto do orçamento da Prefeitura (R$ 8,4 bi).
Pellanda: É um orçamento importante. E eu acho que, no nosso caso, o impacto aparece muito na questão da saúde, por exemplo, se a gente for pensar Porto Alegre sem o Hospital de Clínicas e sem a Santa Casa. Se a gente for ver o entorno também, com certeza também tem um impacto econômico, a UFRGS tem 50 mil alunos. Nós recebemos muitos alunos de fora, o que movimenta a economia. Além disso, as duas universidades têm projetos muito importantes para o desenvolvimento da cidade, transformar a cidade num polo de inovação realmente. Não só a UFRGS e a UFCSPA, como as universidades comunitárias também. Os grandes projetos saem das universidades.
No lançamento da Frente Parlamentar de Valorização das Universidades, uma das coisas que se comentou foi que as grandes atividades econômicas de impacto no PIB, todas elas saem da universidade, que qualifica o pessoal para exercer essas atividades. Então, até como ambiente de negócios a gente vai entrar nessa discussão. A universidade produz capital humano. Numa sociedade que vai ser a sociedade do conhecimento, o que a universidade tem a oferecer é uma solução para o desenvolvimento do País.
Sul21 – Quando o bloqueio foi anunciado, os reitores disseram de forma quase uníssona que isso inviabilizaria as universidades federais a partir do segundo semestre. Hoje, como está o cenário para a UFSCPA?
Pellanda: O cenário é muito preocupante. A gente continua dizendo que o plano A, B e C é reverter o bloqueio. Ontem (quarta-feira, 12), teve a reversão do bloqueio no sistema por ordem judicial, só que não veio nenhum limite extra de empenho. São três etapas. Primeiro a gente tem o orçamento aprovado, depois recebemos o limite de empenho e depois que podemos gastar. Não veio o limite para a gente gastar. Então, na prática, continuou da mesma forma. O dinheiro continua indisponível, embora sem bloqueio a gente já possa abrir licitação, fazer outras coisas. Mas a gente já sabia que isso era por ordem judicial e que a AGU [Advocacia-Geral da União] já estava recorrendo dessa decisão, então não tomamos nenhuma atitude porque sabíamos que o desbloqueio ia apenas durar horas, como realmente aconteceu. Mas a gente acha que é um sinal, teve essa decisão, também tem uma comissão da OAB [Ordem dos Advogados do Brasil] com a Andifes [Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior no Brasil] que está avaliando a mesma questão e provavelmente vai se posicionar, também teve uma audiência no Ministério Público Federal na semana passada, então tem uma série de iniciativas diferentes vindo de diferentes lugares. Tem várias iniciativas do Congresso. É uma construção de uma solução para o problema, que a gente aposta que tem que vir, porque senão a gente vai fechar.
Sul21 – Qual foi o impacto das manifestações de estudantes e professores? Foram importantes nessa construção?
Pellanda: Eu acho que sempre que a gente se une e se mobiliza é algo que demonstra a importância. Faz parte da democracia as pessoas poderem se manifestar, embora a universidade em si não possa tomar uma posição oficial, mas as pessoas que compõem a comunidade universitária se manifestarem e defenderem a sua universidade, mostrar a importância, capilarizar essa defesa. Acho que está sendo extremamente importante. Até por causa do parlamento. A gente vive em uma democracia, os parlamentares vão defender as causas que eles consideram que são importantes para a população.
Sul21 – De forma didática, qual é o trabalho que a UFCSPA faz hoje?
Pellanda: A UFCSPA é a antiga Faculdade Católica de Medicina, que se transformou em Fundação de Ciências Médicas e há 11 anos virou universidade. É a única federal especializada em saúde no Brasil. As principais pesquisas e projetos de extensão dos nossos cursos são relacionados com a área da saúde. A nossa grande força é a graduação nesse momento. Temos a terceira nota mais alta do País nos cursos de graduação e a primeira do Estado. A nossa pró-graduação é mais jovem, está se desenvolvendo e crescendo. A UFCSPA sempre foi conhecida como uma universidade especializada e de excelência, de referência para a área da saúde. A nossa grande presença no atendimento da saúde em Porto Alegre é na Santa Casa. Temos residência no Instituto de Cardiologia, a disciplina de Cardiologia funciona lá também. No HPV, temos a Psiquiatria. E, na zona norte, no Eixo Baltazar, temos alunos e professores no serviço de saúde no território construindo a formação do profissional de saúde. Então, nosso impacto é muito grande na questão do atendimento à saúde da cidade. Além disso, todas as pesquisas têm alguma relação ou com a promoção da saúde, ou com alimentação, ou com atividade física, ou com medicamentos, ou com coisas bastante sofisticadas tecnologicamente como reparo de DNA, tratamento de câncer. Então, tem várias pesquisas de áreas muito diferentes, a maioria relacionadas à saúde. Nós temos também relações com o Ministério da Agricultura porque o nosso curso de Gastronomia e Tecnologia de Alimentos é bastante referenciado socialmente, ele procura desenvolver produtos locais, ajudar, por exemplo, no desenvolvimento de azeite de oliva local, contribuir na composição da merenda escolar. Então, tem várias outras conexões que têm relação com a saúde, mas que estão fora. Tem um projeto super bonito de impressão de células 3D para as crianças do ensino básico estudarem Biologia, crianças com deficiência visual. Então, a gente também tem essa conexão com a secretaria de Educação. Atendimento a mulheres vítimas de violência, promoção da saúde na terceira idade, atividade física para idosos aqui na UFCSPA. Então, tem uma série de projetos com um impacto grande.
Sul21 – E imediato.
Pellanda: Todos esses projetos correm o risco de serem interrompidos.
Sul21 – O que seria da Santa Casa e das outras unidades de saúde que tu falaste se não tivessem o apoio da universidade?
Pellanda: A nossa presença é muito maciça na Santa Casa. Todos os residentes da Santa Casa são nossos estudantes. São mais de 500. Ficaria muito difícil viabilizar a instituição. A própria direção da Santa Casa sempre coloca isso como uma questão muito importante. A gente tem uma relação em que um potencializa o outro. A universidade é muito importante par a Santa Casa e a Santa Casa é muito importante para a universidade. Mas inviabilizaria. Por exemplo, em transplantes. O Hospital de Clínicas e a Santa Casa fazem juntos mais de 1 mil transplantes por ano. Quase todos os transplantes no Brasil são relacionados a universidades. Então, o impacto seria absurdamente grande.
Sul21 – Se formos colocar no papel, essa perda de sinergia geraria um custo maior para ser substituída.
Pellanda: Quando a gente a fala que é investimento, a gente não tá brincando. É um investimento que rende muito, o retorno é alto. Se a Santa Casa não conseguisse ter a presença da universidade, isso inviabilizaria o SUS na Santa Casa, que tem uma dívida muito grande com o SUS. Ela consegue recuperar de outras maneiras, mas não teria como sustentar mais o SUS, porque ela não recebe o valor integral que gasta com o SUS. Eu não sei a proporção exata, mas a cada R$ 1 que a Santa Casa gasta com o SUS, recebe R$ 0,60, por exemplo. Para compensar, ela tem que fazer uma série de outras atividades. Se o custo aumenta muito para eles, isso inviabiliza o atendimento do SUS em um hospital muito significativo da cidade.
Além disso, quando a gente investe em pesquisa, pode economizar milhões para o País. Esse investimento é dinheiro público. Quando colocamos tudo isso a perder, isso também é muito perigoso, porque também é um desperdício de dinheiro público. É um dinheiro que poderia estar rendendo e aí vamos ter que pagar por uma tecnologia estrangeira porque deixamos de desenvolver a nossa.
Sul21 – A senhora falou no início da conversa que nem sabia que precisava defender a universidade pública até esse momento, mas de fato as universidades têm sido alvo de ataques e campanhas de difamação. Como tu vês esses ataques e essas manifestações de desvalorização das universidades?
Pellanda: Isso nos pegou muito de surpresa. A gente não imaginava que ia precisar defender a universidade dessa forma, mas acho que faz parte de um movimento que começou já há algum tempo no mundo, é global, de anti-intelectualismo e anti-conhecimento. Hoje, séculos de descobertas científicas têm sido equiparados à opinião de alguém. Acho que faz parte de criticar os espaços em que se produz conhecimento crítico. Dentro dessa transformação do mundo que foi disponibilizar o conhecimento para todo mundo, não é mais um privilégio de quem está numa torre de marfim, um acadêmico, um intelectual. O conhecimento está disponível, a informação está disponível, está democratizada, isso aumenta muito a responsabilidade de cada um que compartilha esse conhecimento e como ele vai interpretar. Então, hoje a gente sempre fala que o que precisamos ensinar não é o conteúdo, mas onde buscar a informação e como analisar criticamente. Eu acho que é o mesmo que o jornalista faz. Ele não fica transmitindo a informação, um jornalista interpreta, precisa analisar criticamente. A gente sente que toda essa campanha reforça a necessidade do nosso papel educador. A gente vê nas pesquisas internacionais que o povo brasileiro é um dos que tem menor conhecimento sobre a sua própria realidade e isso reforça a necessidade de universidades. Tudo que está acontecendo de campanha contra a universidade, para mim, é o argumento mais poderoso a favor da universidade. Cada vez a gente precisa de mais acesso à informação de qualidade.
Sul21 – Como tu vês a questão da Escola Sem Partido?
Pellanda: A gente acredita que não ter partido já é ter partido. Partido é uma parte, então todas as partes têm que estar representadas e, obviamente, que a gente não vai tolerar doutrinação ou imparcialidade, naquele sentido estrito de tentar colocar apenas uma posição. A universidade é um local para o debate respeitoso de ideias, a universidade é o local da pluralidade de ideias, é por isso que ela é tão importante nesse momento. Obviamente que existem as pessoas com as suas posições e isso é ótimo, as pessoas têm que ter posição. O que é importante é que a universidade abrigue essas posições, desde que, claro, elas não sejam inconstitucionais. Por exemplo, tem coisas que a gente não vai admitir como instituição. Racismo é crime, discriminação e essas coisas não estão dentro desse rol da liberdade de expressão. Discurso de ódio não é liberdade de expressão. Mas a universidade é um lugar que deve abrigar todas as posições, sim. Nesse sentido, nunca vai ser uma escola com partido, mas com muitas partes.
Sul21 – A UFCSPA já teve casos de professores filmados durante as aulas?
Pellanda: Que tenha chegado até nós, não.
Sul21 – Muito tem se feito a oposição entre os investimentos em ensino superior e na educação básica, o que, na verdade, é uma falsa dicotomia, porque a responsabilidade da União é financiar o ensino superior e cabe a estados e municípios investirem na educação básica. Como tu vês esse argumento de que é preciso cortar da universidade para investir nos outros níveis?
Pellanda: Eu acho que é um argumento que não se sustenta. Na verdade, a gente precisa investir em todos os níveis de ensino. É um País que precisa de educação e os níveis se alimentam e são sinérgicos. A universidade é a principal formadora dos recursos humanos para a educação básica. É na universidade que se formam os professores do ensino básico e se faz pesquisa sobre a educação, que é uma coisa muito importante. Como é que a gente inova em educação, como é que o mundo está sendo transformado e como é que a gente vai transformar a educação? Sem a universidade pública, por exemplo, logo faltariam professores de várias áreas importantes, como Geografia. A universidade pública que forma essas pessoas. Não existe dicotomia entre o ensino básico e o ensino superior. Além da questão de quem é responsável pelo financiamento, a gente está em contato direto com todos os níveis do sistema. O que precisamos é aumentar o investimento em educação como um todo.
Sul21 – Retomando a ideia do início da conversa, uma vez sendo preciso defender a universidade pública, o que as instituições podem fazer para prestar esclarecimento, para enfrentar esses argumentos usados não só pelo governo?
Pellanda: Eu acho que está sendo uma lição muito importante para nós. Eu acho que a gente tem que aprender a dialogar com a sociedade. São coisas que, nas últimas décadas, a gente vem melhorando muito, mas agora sentimos a necessidade de melhorar mais ainda, de fazer realmente um diálogo franco com a sociedade. A gente tem que melhorar a divulgação do que se faz aqui com uma linguagem que seja mais acessível para as pessoas entenderem a importância dos projetos de pesquisa, dos projetos nas comunidades, projetos de extensão. Temos que perguntar para a sociedade o que ela quer de nós e eu acho que tem que defender muito veementemente a questão de que a lógica do lucro não se aplica às universidades públicas. Nós temos que pensar, além de todos esses argumentos econômicos que eu falei, numa coisa muito maior, que é o nosso capital humano, a nossa humanidade. Tudo o que nos torna mais humanos é útil. A Filosofia e a Sociologia só nos tornam mais humanos e, nesse sentido, a gente não pode pensar nas coisas que dão lucro, que sustentariam a universidade com mensalidade, por exemplo, porque tem coisas que jamais vão dar lucro, mas vão economizar milhões para o País. Por exemplo, o tratamento de doenças negligenciadas. Isso não vai ser feito pela indústria farmacêutica, precisa ser feito na universidade. A erradicação de problemas fundamentais do País, a universidade pode se debruçar sobre esses problemas, mas a gente não pode pensar que isso tem que gerar um produto imediato. Vai ser uma solução para o País. Nessa questão, o investimento público tem que se dirigir para coisas negligenciadas, inovação radical, desenvolvimento do capital humano, desenvolvimento do País, coisas que têm que ser investimento público. Mesmo nos países com modelos de menos investimento, esse investimento em pesquisa e na universidade é feito pelo governo, principalmente. Se fala no modelo de Harvard, MIT, mas o investimento do governo é pesado nesses lugares.
Sul21 – Como tu explicarias que é preciso ter universidades públicas e não delegar esse trabalho para o ensino privado?
Pellanda: Se a gente for fazer os cálculos pelo curso que vai ter número de vagas preenchidas, é óbvio que temos que fazer um estudo de demanda. É óbvio que a gente não pode abrir vários cursos na mesma cidade. Por exemplo, eu não vou abrir um curso de Física se a UFRGS já tem e os dois não preenchem as vagas. Isso é claro que vamos ter todo um cuidado de planejamento. Mas, por exemplo, a UFRGS tem um curso de grego. Esse curso nunca vai preencher as vagas e jamais se pagaria, mas é preciso que haja alguém que vai zelar por esse conhecimento, esse patrimônio que é imaterial da humanidade. Nesse sentido, é necessário que seja uma universidade pública.
Claro, existe um conceito de universidade de qualidade e nós temos, no RS,, uma tradição muito importante das universidades comunitárias, que também são muito importantes para o desenvolvimento regional e muitas fazem pesquisa muito bem e estão bem posicionadas nos rankings. Eu não contraponho públicas versus privadas, mas sim universidades de qualidade e é muito importante, sim, que existam as universidades públicas federais, estaduais e municipais e as universidades comunitárias, que se dirigem muito para o desenvolvimento regional. E existem aquelas universidades que não deveriam se chamar universidades porque são, na verdade, fábricas de diplomas. Não fazem nem pesquisa, nem extensão. Mesmo o ensino não é inovador, é um ensino padronizado. Com essas que a gente têm que se preocupar muito.
Sul21 – Essas que estão ganhando espaço nos últimos anos.
Pellanda: Exato. Cada vez que a universidade pública é atacada, as ações dessas universidades que estão no mercado sobem. Isso me preocupa muito porque, quando a preocupação é obter lucro, algumas coisas vão ficar para trás. É claro que a gente vai ter um raciocínio muito mais utilitarista. Enquanto que, para a universidade pública, tudo o que nos torna humanos é útil como nação, por isso que a nação tem que assumir essa defesa.
Sul21 – Qual é o futuro que o País terá se toda a educação superior for tratada nessa lógica mercantilista, como um negócio.
Pellanda: Nessas fábricas de diploma, a trajetória do indivíduo não interessa, importa só o diploma lá no final. Enquanto que aqui, na universidade de qualidade, a gente constrói uma trajetória, ele aprende a pensar, aprende a construir o conhecimento. Isso está acontecendo muito nos Estados Unidos, tem algumas pesquisas que mostram que o cidadão médio não consegue interpretar uma notícia de jornal. Não adianta a gente ter acesso à informação se a gente não puder interpretar. Se a gente não puder interpretar um artigo científico que fala, por exemplo, da importância das vacinas. Isso, na nossa área da saúde, é tão grave que leva à morte. Na nossa área, ignorância, literalmente, mata, porque se a gente vai começar a contestar pesquisas muito importantes feitas durante décadas e vamos fazer uma campanha anti-vacina, por exemplo, vamos ter a volta de doenças que já tinham sido erradicadas.
Sul21 – Qual tu achas que é a origem desses movimentos anti-científicos, que têm nas campanhas contra vacinação uma expressão concreta?
Pellanda: É muito difícil detectar a origem. Eu entendo como um movimento anti-pensamento crítico, anti-pensamento. Acho que a gente precisa reagir com a nossa capacidade educadora. É muito complexo, não sou da área da Sociologia para saber como começou, mas é muito preocupante.
Sul21 – E por que as pessoas têm que se vacinar?
Pellanda: Essa história é bem interessante. Começou com um pesquisador que fez um trabalho. Para quem está de fora, é muito difícil de entender a ciência, porque ela está sempre duvidando de si mesma e se testando, por isso que ela é tão confiável. Ela vai mudando justamente porque a gente vai sempre retestando as hipóteses. Mas um pesquisador fez um trabalho que associou crianças que se vacinaram com autismo. Só que depois foi comprovado que todas as crianças, eram menos de 20, já tinham sinais de autismo antes da vacinação. Quando ele fez essa associação, aquilo gerou grande repercussão. Aí entra também a responsabilidade da imprensa de divulgar coisas que são muito sensacionalistas sem conferir a fonte. Aquilo foi virando uma bola de neve, vários estudos foram citando aquele e depois se descobriu que o estudo não era adequado. O estudo já foi retratado e foi retirado, não está mais acessível, mesmo assim continua sendo citado nesses fóruns anti-vacina e nesse meio tempo já foram realizados estudos com milhões de crianças mostrando a importância da vacinação. Claro que sempre que se desenvolver uma vacina nova ela vai ter que ser testada da mesma forma, mas essas vacinas para doenças comuns da infância são, assim como as universidades, vítimas do seu próprio sucesso, porque a gente acha que não precisa mostrar o seu valor. Não tem mais crianças com aquelas doenças e as pessoas tendem a achar que não é tão grave, mas é. Sarampo é muito grave, caxumba e rubéola são muito graves se uma criança com fragilidade pega. Principalmente as que têm imunodepressão, que não podem se vacinar, contam com que os outros se vacinem para se proteger. É um perigo ter uma informação inadequada e espalhar essa informação. Acho que as pessoas não têm noção da responsabilidade que elas têm quando espalham uma informação errada.