Sócrates acusa juiz de ir “além do seu poder” e PS de “profunda canalhice”
Foi a primeira entrevista de José Sócrates depois de, na última sexta-feira, ter ouvido o juiz de instrução Ivo Rosa, no Campus da Justiça, em Lisboa, deixar cair 25 dos 31 crimes de que estava acusado.
O ex-primeiro-ministro foi ilibado de todos os de corrupção de que era acusado pelo Ministério Público, mas vai ter de responder por três crimes de branqueamento de capitais e três de falsificação de documentos.
Entrevistado na TVI, por José Alberto Carvalho, o antigo governante começou por pedir “um mínimo de rigor” ao entrevistador, reforçando que o juiz não o “declarou corrupto”.
“O juiz não me declarou corrupto, estamos na fase de instrução, em que não se declara isto ou aquilo, o que se faz é perceber se há ou não indícios para levar a julgamento ou não”, afirmou.
Sócrates aproveitou para deixar uma crítica ao juiz de instrução, numa alusão a um crime de corrupção que não constava na acusação, mas que foi apontado por Ivo Rosa, que o declarou, porém, prescrito, embora relacionado com a pronúncia por branqueamento.
“Esse crime não consta da acusação. E é falso, absolutamente falso, injusto para comigo e para com o engenheiro Carlos Santos Silva”, afirmou, argumentando ainda que esse crime de corrupção sem ato “já não existe no Código Penal” e que agora se trata de recebimento de vantagem indevida.
De qualquer forma, o ex-primeiro-ministro quis reforçar que “esse crime não só não existe, como está prescrito” e nunca lhe foi apresentado em sete anos para que se pudesse defender, mas afirmou que se vai “defender destes factos e dessa imputação”.
O juiz “não tem o direito de me indiciar de crimes novos que não estavam na acusação, porque o juiz não acusa de novo. Estes crimes de branqueamento de capitais não são os que estavam” na acusação do Ministério Público, referiu.
“Durante estes sete anos, esse crime nunca me foi apresentado como sendo um crime que tivesse cometido e diante do qual eu pudesse me defender”, afirmou, considerando que, durante este período, provou que era “falso” que fosse “dono de alguma fortuna escondida”.
Sobre Ivo Rosa, Sócrates não quis fazer “nenhuma apreciação ao juiz”, dizendo que não tem “nenhuma simpatia nem nenhuma antipatia” por ele e que foi “um juiz escolhido segundo as regras da lei, coisa que não aconteceu com Carlos Alexandre”.
Mas considerou que este “foi além do seu poder”. “Acho ilegítimo que um juiz passe muito tempo a caracterizar um crime de que não me pude defender”, afirmou.
“Isto é humilhante demais”
Sócrates observou ainda que, depois de sair do cargo de primeiro-ministro, fez “algumas coisas” a pedido do amigo Carlos Santos Silva, apontando o exemplo da Argélia.
“Fiz para ele e para a empresa Lena, como fiz para outras várias empresas. Julguei que era o meu próprio dever fazê-lo. Vários empresários me pediram ajuda para contactar pessoas. Isso não me parece que possa ser considerado uma atividade que possa levantar o mínimo de suspeita. Todos os antigos primeiros-ministros fazem isso e fazem isso para a defesa do interesse das empresas portuguesas”, considerou.
Sobre os “empréstimos” do amigo e empresário, que diz ter sido agora acusado de corruptor ativo, Sócrates quis reforçar a mensagem de que foram posteriores ao tempo em que foi primeiro-ministro.
“Em 2013 ofereceu-se para me ajudar, porque eu estava em Paris, para fazer um mestrado e para que os meus filhos pudessem acabar o liceu numa escola no estrangeiro. Não foi luxo, foi um investimento na minha educação e dos meus filhos. Diz respeito a mim e a eles, e foi só em 2013″, destacou o ex-governante, lembrando que já não estava no cargo de líder do Governo nessa altura.
“Quando estava a exercer o cargo de primeiro-ministro, nunca houve atos contrários ao seu exercício”, reforçou mais do que uma vez.
Insistindo no assunto, José Alberto Carvalho elencou vários levantamentos e entregas de dinheiro, muitas delas em numerário, ao que o ex-governante respondeu que o “dinheiro era para Carlos Santos Silva”. “Nem todos os levantamentos eram para me entregar a mim”, declarou.
Mas, perante a insistência do entrevistador, e com o jornalista a apontar à “riqueza” e ao “cofre” da sua mãe, Sócrates perdeu a calma que o caracteriza.
“É altura de acabarmos com isto, José Alberto Carvalho. Desculpe, mas isto começa a ser insultuoso demais. Pergunta-me sobre as contas do meu amigo? Faça-me um mínimo de justiça. (…) É muito humilhante falar nisto, eu disponho-me a vir aqui e ainda falam de coisas da minha família”, declarou.
O “mandante” de Medina e a sua “profunda canalhice”
O antigo primeiro-ministro atribuiu ainda as críticas que lhe foram feitas pelo presidente da Câmara de Lisboa, Fernando Medina, ao seu “mandante” na liderança do PS, que acusou de “profunda canalhice” e de “ajustar contas com a sua covardia moral”.
“Eu ouvi essas declarações e ouvia-as com a devida repugnância. Mas concentremo-nos no essencial, porque o essencial não é esse personagem, o essencial é quem o manda dizer isso. Falemos, portanto, do mandante”, reagiu Sócrates, sem nunca mencionar o nome do secretário-geral do PS e primeiro-ministro, António Costa.
“Essas declarações dizem tudo sobre o que realmente pensa a direção do PS. Portanto, a direção do PS acha que pode e deve fazer uma condenação sem julgamento, fazer uma condenação sem defesa, esquecendo até o princípio da presunção da inocência base do direito moderno”, declarou.
Mas o antigo líder socialista foi ainda mais longe, considerando que essas declarações do autarca lisboeta “são de uma profunda canalhice”.
“Isto para mim é penoso, mas quero responder. O PS deveria ter vergonha por desconsiderar direitos, liberdades e garantias fundamentais. Valores que fizeram a cultura política do PS quando lutou pela liberdade em 1975”, disse ainda.
Medina diz que o comportamento de Sócrates “corrói o funcionamento da vida democrática”
Sócrates aproveitou ainda para dizer que o fundador do PS, antigo Presidente da República e primeiro líder dos socialistas, Mário Soares, esteve sempre ao seu lado, mesmo durante o processo Operação Marquês.
“Mesmo aí, quando expressou esse companheirismo comigo, por razões não apenas pessoais, mas entendendo que era o seu dever, mesmo aí tentaram desvalorizar essa posição. Tentaram insinuar que ele valorizava demasiado a amizade”, alegou.
José Sócrates, em estilo de conclusão, disse que continua a entender que fez bem em abandonar o PS em 2018.
“Já não aguentava mais o silêncio. Grande parte desses que dizem essas coisas estão a ajustar contas com a sua própria covardia moral. Não disseram uma palavra quando fui detido no aeroporto, com televisões, e com base no argumento do perigo de fuga. Hoje, isso parece ridículo, mas fui preso 11 meses sem acusação”, acrescentou.
Entretanto, no programa “Circulatura do Quadrado”, também na TVI, a líder parlamentar do PS, Ana Catarina Mendes, criticou as declarações de José Sócrates sobre Medina, classificando o ataque de “uma tremenda injustiça”, quer “à direção do PS, quer ao próprio António Costa”, tendo-o considerado “um traidor, não só na entrevista de hoje, como nos últimos dias”.
“O PS nunca apagou a história do seu partido”, sublinhou a socialista. “Sabe que José Sócrates deu a primeira e única maioria absoluta ao partido, foi secretário-geral, foi primeiro-ministro e, em processo judicial, sempre disse que deixaria o processo correr na justiça, deixando-a fazer o trabalho que tem de fazer”, afirmou.