"Sou seu fiél guardião, Moça, assim como você é minha fiél escudeira

29 de outubro de 2017 1126

Costumo dizer que a vida vive a nos surpreender. Ela segue seu curso sem se preocupar com as barreiras que iremos encontrar pelo caminho, talvez porque ela acredite em nós, na nossa capacidade de progredir e criar nosso próprio destino, ou apenas porque nós precisemos conhecer a dor para entender e viver a verdadeira felicidade.

São suposições fúteis, eu sei, mas disso tudo vejo uma única verdade: a vida é ambígua, oferece a cada um de nós dois lados. Sim, ela pode nos oferecer chuva numa manhã de sol, lágrimas de alegria, o amargo e o doce, tudo exatamente assim e, quem sabe, no mesmo dia, mas, cabe a nós, sim, a nós mesmos, escolher como queremos seguir nossa caminhada, com qual lado queremos lidar, e se você me permite ir mais adiante, diria que ela nos da a oportunidade de conhecer nossas próprias trevas ou deixá-las se apresentar. Sim, é isso que torna nosso presente responsável por nosso futuro: nossas decisões.

A vida é essa caixinha de surpresas a qual lhes tento descrever agora, segue sempre adiante nos aplicando inúmeras provas, acreditando na nossa capacidade de escolha, por isso, cabe a nós ser resiliente, seguir em frente, ou se afundar nas trevas da ignorância.

Essa história começa exatamente aqui, no momento em que tive que me perder para me reencontrar, se é que você me entende...

Não estava sendo fácil. As mudanças e novidades repentinas, que sucetivamente surgiam em minha vida, pareceram fazer dela, um barco desgovernado. Minha cabeça estava confusa, era morada de pensamentos cansados, exausos, e refletia sentimentos atordoados, que me embalavam naquele momento. Silêncio, e quanto mais silêncio, mais barulho, o melhor amigo e pior inimigo que eu poderia esperar. Eu só chorava. Lutava comigo mesma para encontrar a paz que eu tanto procurava e que, sem saber, eu afastava. Eu não via saída, só queria ver tudo acabar.

Por vezes, a praia foi meu refúgio e sua imensidão, o meu lar. Sentada na areia, perdia horas do dia sentindo a calmaria me banhar. Entregava rosas, pedia ajuda e procurava conchinhas esperando o tempo passar. No barulho das águas, quebrando nas pedras, sentia a esperança de que tudo iria mudar. Como? Eu não sabia.

A decisão estava tomada: mediante ao desequilibrio emocional que eu percebi que vivenciava, não encarei outra alternativa a não ser procurar aquela que de mim e dos meus cuidava...

A cada toque do atabaque meu coração pulsava, tremia ao sentir a energia que se aproximava. Uma pausa. O barulho do adjá parecia recordar algumas memórias adormecidas, o sentimento vivo de que desde que ali cheguei, soube que nunca mais estaria sozinha. Lágrimas. Lágrimas ao ter a certeza de que eu amava o lugar onde estava, por estar tão perto e ao mesmo tempo tão longe da gira que eu mais adorava. Palmas, palmas e mais palmas. Olhares cheios de alegria revelavam a ânsia por quem estava prestes a chegar...

Joelhos ao chão, uma gargalhada; a frase de sempre, um charuto e sua Capa, de longe eu observava. Seus olhos pareceram percorrer cuidadosamente os quatro cantos do terreiro. Cumprimentou cada um de seus "cumpadres" e pareceu iniciar seu trabalho que, como todos sabemos, há muito já havia iniciado.

Não demorou muito para ele vir até onde eu estava, sua pergunta pareceu certa e determinada:

"Boa Noite, Moça - Sem perder o costume, deu um abraço apertado - O que faz aqui fora?"

"Boa Noite, S. Capa - Devolvi a pergunta com a resposta que eu mesma já tinha me dado - Não ando muito bem, não quero prejudicar os trabalhos, hoje vim somente receber um pouquinho daquilo que sempre é doado."

Ele prosseguiu pela assistência cumprimentando cada um daqueles que ali estavam, mas pouco tempo depois ele retornou, abriu a corrente e me pediu algo que, talvez, já tivesse pensado:

"Pode pegar minha bebida?" - Sorri, assenti, saudei e entrei, e logo quando eu retornei com sua garrafa de vinho preferida, ele prosseguiu: "Fique aqui dentro, Moça. Aqui é o seu lugar."

Assenti, eu sabia que podia confiar nele, sempre soube. Alguns pontos foram tocados, eu mal parecia os lembrar, e um breve atendimento foi feito antes dele me pedir para sentar. Seu olhar pareceu ler minha alma:

"Moça, eu sei tudo o que você vai me dizer, mas eu quero que você mesma me diga para colocar para fora tudo isso que está sentindo e que está te confundindo"...

Tudo aquilo que não saiu da minha boca por tanto tempo, pareceu transbordar pelos meus olhos, por instante não fui capaz de segurar... As lágrimas caiam sem parar, os soluços evidentes faziam eu entender que o que eu não dizia, fazia ainda mais me machucar. A essa hora, minha cabeça repousava em seu colo e sua capa me abrigava. Não sei quanto tempo demorei e ele também não pareceu se importar, sua mão afagava minhas costas como quem dizia que tudo iria melhorar. Quando o choro pareceu cessar e ele enxugou minhas lágrimas, continuou a falar:

"Moça, você é dona do seu próprio caminho, é a responsável por seu destino, e eu não tenho permissão para interferir nisso, nem gostaria. Por muitas vezes você precisará escolher a estrada que vai seguir e como quer construi-la: com as pedras da ignorância ou da sabedoria, fraquezas ou fortalezas, tristezas ou alegrias, porque as decisões fazem parte dessa vida, você gostando ou não, e quando você decidir, dê tempo ao tempo para que o gelo derreta e se transforme em água límpida, pura e cristalina como deve ser, consegue entender? - Prosseguiu sem muita demora - Não sinta medo e não se sinta sozinha, porque em cada encruzilhada que você passar, cada escada que você subir ou em cada areia que você pisar, eu estarei lá, você pode até não me ver, mas sei que pode me sentir, e eu sei que você sente muito bem, não é? - Mais lembranças pareceram me invadir, sim, eu sabia que poderia o sentir - É tempo de plantar e de colher, Moça, não se esqueça disso. Levante-se, continue, e em momento de indecisão, opte pelo coração, sempre."

Pouco falei depois disso, a leveza que me invadia era maior do que qualquer coisa, a confusão pareceu se esvair da minha mente e a solidão, o breu, que parecia me cercar, dava lugar a luz e a certeza de que não estava só.

Sim, Exú também fala bonito, é guardião, amigo, irmão; caminha ao nosso lado noite e dia nos protegendo dos perigos, guiando nossas vidas. Naquela noite, ele fez muito mais do que enxugar minha dor e ouvir o que eu não dizia, Seu Capa Preta mudou meu destino, me resgatou das minhas próprias sombras, dos meus próprios temores, e me "devolveu" a vida, ensinou algo muito maior do que sou capaz de descrever nesse momento.

Hoje, a ele agradeço por me mostrar o verdadeiro significado das palavras lealdade e respeito, por nunca me abandonar e fazer valer as promessas que, um dia, foram feitas:

"Sou seu fiél guardião, Moça, assim como você é minha fiél escudeira - O sorriso que por tanto tempo ficou escondido, agora surgia sob a lembrança daquele "título" que ganhei com tanto carinho dele mesmo. Sim, eu tinha certeza disso. - Quando precisar, chame por mim." ... E eu chamaria.

Dedico a ele mais esse texto, que sei que me foi permitido escrever, e mais uma vez agradeço por me proporcionar aprendizados incríveis, me ensinar um pouco mais do que é viver.

Ao nosso fiél guardião, Capa Preta.