SURRA COM CHICOTE E BANHO DE SALMOURA e QUASE 30 ANOS DEPOIS, A SURPRESA DO CORONREL
O fato que vou narrar a seguir é real. Foi-me contado, com todos os pormenores, por um amigo, cujo avô era um típico “coronel” do nosso interior.
O fato se passou no atual Mato Grosso do Sul, no município de Aquidauana. Em princípios do século XIX, estabeleceu-se numa sesmaria uma família, de nome Alves Ribeiro, com sede numa fazenda situada a 50 km de Aquidauana. Essa fazenda ainda hoje está na posse dessa mesma família, há quase 200 anos.
Por volta de 1930, o Coronel Joselito Alves Ribeiro, neto ou bisneto dos fundadores, era o proprietário da fazenda. Não havia estrada de asfalto, obviamente, até Aquidauana. A estrada era de terra, dificilmente transitável, em épocas de chuva, até mesmo por jeeps. A maior parte das comunicações precisava ser feita a cavalo e o transporte se fazia por morosos carros de boi.
Naquele conglomerado humano não havia polícia, não havia autoridades oficiais. Por força das circunstâncias, cabia ao coronel assegurar a ordem. Era uma situação bem parecida com aquela que, em outros tempos e em outras realidades geográficas, tinham os nobres europeus da Alta Idade Média, quando em torno de sua fortificação primitiva se reuniam, em busca de proteção contra os bárbaros invasores, as populações pobres. Ou o coronel assegurava ordem, ou seria o caos...
Pois bem, mais ou menos em 1930 o coronel quis puxar fios de telefone de Aquidauana até à sede da fazenda, para facilitar as comunicações, e contratou um engenheiro norte-americano, que tinha muita experiência e foi dirigir os trabalhos. O engenheiro, homem já de certa idade, levou consigo sua jovem esposa, loira e muito bonita. Hospedaram-se ambos na casa do coronel, que era a sede da fazenda. De manhã cedo, o engenheiro saía a cavalo, para fazer seu trabalho, e a jovem passava o dia todo na fazenda.
Ora, aconteceu que um dos empregados da fazenda começou a assediar a moça, e esta lhe deu trela, tendo início um namorico entre ambos.
Quando o coronel soube, ficou indignado, sobretudo porque o fato se passava na sua própria casa. Era inaceitável que um hóspede da família, que havia confiado a esposa à guarda da família do coronel, tivesse assim sua confiança defraudada.
O coronel mandou, então, lhe trazerem o sujeito. Já se sabia o que iria lhe acontecer: seria amarrado num poste, levaria uma boa surra de chicote e, depois, receberia um banho de salmoura. Era o costume naqueles tempos e naqueles lugares...
O sujeito desconfiou e apressou-se em fugir para o mato, armado com uma carabina Winchester 44. O coronel mandou pegá-lo e trazê-lo vivo.
Depois de vários dias de caçada, afinal encontraram o homem. Ele reagiu a bala, até feriu um dos homens do coronel, mas foi agarrado e levado para a fazenda. Lá, foi para o poste, levou a surra de costume e, depois do famoso banho de salmoura (para as feridas não infeccionarem), o coronel mandou levá-lo desmaiado para Aquidauana e o deixarem lá na entrada da cidade. Mas mandou colocar, no bolso dele, todo o dinheiro que ele tinha o direito de receber, pelos dias trabalhados do mês, e acrescentou uma boa quantia extra, para o sujeito poder viajar para local distante e se estabelecer em outra parte.
Depois, nunca mais se ouviu falar dele. Até que...
No próximo artigo, contarei a continuação do caso...
Quase 30 anos depois,
a surpresa do coronel
No último artigo, contei o episódio do coronel matogrossense que mandou chicotear um empregado que, abusando da confiança, assediara a esposa de um engenheiro norte-americano hospedado na fazenda. Como narrei, o faltoso recebeu uma boa surra de chicote, seguida de um banho de salmoura. Depois, foi largado junto à cidade de Aquidauana e desapareceu. Nunca mais se ouviu falar dele na região.
Mas o caso não estava concluído.
Quase 30 anos depois, já no final da década de 1950, o mesmo coronel Joselito Alves Ribeiro, bem idoso, estava passeando pelo Rio de Janeiro e resolveu ir a uma barbearia. Entrou, sentou-se e o barbeiro começou a lhe fazer a barba. Ensaboou o rosto, afiou a navalha e começou o seu serviço. A certa altura, tratou o freguês como coronel.
Este perguntou:
- Como sabe que eu sou coronel?
- Ora, coronel, eu conheço muito bem o senhor.
- De onde você me conhece?
- Da Fazenda Taboco, em Aquidauana.
- Da minha fazenda? Mas eu não me lembro de você.
- Sim, eu trabalhei lá há muitos anos. O senhor não se lembra de um empregado seu que, certa vez, estava namorando a mulher de um engenheiro americano e aí, quando o senhor descobriu....
O barbeiro não chegou a contar a história inteira. Logo pelas primeiras frases, o coronel pulou da cadeira e tomou atitude de defesa, certo de que estava para ser degolado pelo seu antigo empregado.
Mas este, surpreendentemente, disse algo muito diferente do que o assustado coronel esperava ouvir:
- Pelo amor de Deus, coronel, não pense mal de mim, não... Eu não vou fazer nada de mal no senhor. Eu sou muito agradecido ao senhor. O senhor foi um verdadeiro pai para mim, porque fez comigo o que o meu pai devia ter feito e nunca fez.
E, diante do estupefato coronel, completou sua história:
- Aquilo que eu fiz com a moça americana, coronel, não foi a primeira que eu “aprontei”. Eu já tinha feito várias e o senhor nem ficou sabendo. Eu estava no mau caminho, porque era malandro mesmo e meu pai nunca me corrigiu como devia. Mas quando o senhor me mandou dar aquela surra, foi aquilo que me curou. Num primeiro momento, fiquei com muita raiva do senhor, era capaz até de matá-lo. Mas depois compreendi que o senhor foi bom para mim, me corrigiu, me endireitou, e até me deu um bom dinheiro para eu tomar juízo e endireitar a vida... Com o dinheiro que o senhor me deu vim para o Rio, aprendi a profissão de barbeiro, fiz a minha vida, casei, sou pai de família e até já sou avô. Tudo isso graças à surra que o senhor mandou me dar. Muito obrigado, coronel, eu não queria morrer antes de ter reencontrado o senhor para lhe agradecer... Mas agora, por favor, sente aí que eu quero acabar a sua barba e faço questão de não cobrar...
O coronel sentou, acabou de fazer a barba, depois se despediu cordialmente do barbeiro e voltou para Mato Grosso...
O fato, repito, é real e foi-me contado por um neto desse fazendeiro.
ARMANDO ALEXANDRE DOS SANTOS, é historiador e jornalista profissional, membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e da Academia Portuguesa da História.