Ulysses, a Constituição e o país que temos
Os que irão às urnas amanhã, mesmo não se lembrando disso, estarão homenageando mais um aniversário da Constituição Cidadã
Lembro-me nitidamente do dia primeiro de fevereiro de 1987, em que o Brasil deu mais um largo passo na travessia gradual para a democracia. Honrando promessa de Tancredo Neves e da Aliança Democrática firmada para enterrar a ditadura através de seu próprio instrumento ilegítimo, o Colégio Eleitoral, em novembro de 1985 o presidente Sarney havia convocado a Constituinte, que agora se instalava, através da Emenda Constitucional 26.
Quase dois anos depois, em 5 de outubro de 1988, Ulysses Guimarães promulgava a Constituição Cidadã, que hoje completa 36 anos. No plenário lotado, no tempo em que nós, jornalistas, ali podíamos nos misturar aos parlamentares, acompanhei hipnotizada aquele discurso em que ele declarava por todos nós: “temos ódio à ditadura. Ódio e nojo”.
Quatro anos antes, como muita gente naquele plenário, eu havia chorado ao ver no painel o resultado da votação da emenda das diretas: faltaram 22 votos.
Nos 20 meses de funcionamento da Constituinte, como que rompendo o silêncio e o medo dos anos da ditadura, o povo brasileiro protagonizou um momento ímpar de intensa e ruidosa participação popular na vida institucional. Deixo que o próprio Ulysses fale disso, reproduzindo trecho daquele discurso memorável:
“O enorme esforço é dimensionado pelas 61 mil e 20 emendas, além de 122 emendas populares, algumas com mais de 1 milhão de assinaturas, que foram apresentadas, publicadas, distribuídas, relatadas e votadas no longo caminho das subcomissões até a redação final.
A participação foi também pela presença, pois diariamente cerca de 10 mil postulantes franquearam livremente as 11 entradas do enorme complexo arquitetônico do Parlamento à procura dos gabinetes, comissões, galeria e salões.
Há, portanto, representativo e oxigenado sopro de gente, de rua, de praça, de favela, de fábrica, de trabalhadores, de cozinheiras, de menores carentes, de índios, de posseiros, de empresários, de estudantes, de aposentados, de servidores civis e militares, atestando a contemporaneidade e autenticidade social do texto que ora passa a vigorar.”
Um outro tempo então começou.
Em 5 de outubro de 1992, quando a Constituição completava cinco anos, e Ulysses faria 76 no dia seguinte, eu e Jorge Bastos Moreno fomos a seu gabinete cumprimentá-lo, porque ele viajaria naquela mesma noite para São Paulo, e de lá para Angra dos Reis. Tomando um exemplar da primeira edição da Constituição, nela ele escreveu uma dedicatória a meu filho Rodrigo, que tinha dez meses e ele conhecera recém-nascido. Lá em Nova York, onde ele hoje serve ao Brasil como diplomata, ela é guardada como relíquia preciosa.
No dia 12, voltando de Angra, o helicóptero em que Ulysses viajava caiu no mar. Seu corpo nunca foi achado. Ele também vivera uma Odisseia mas, diferentemente do outro Ulysses, o grego, não chegou a Ítaca.
Podemos dizer, entretanto, que nós, brasileiros, chegamos à Ítaca da democracia, com todos os percalços que tivemos nestes 36 anos, com todas as falhas que a Constituição possa ter, e apesar das tantas emendas que já lhe fizeram. Devemos a democracia a todos os que por ela lutaram e morreram mas temos uma dívida para com Ulysses, um liberal a quem não faltou coragem no combate à ditadura.
A Constituição promulgada há 36 anos já foi em muitos pontos deformada por emendas, em outros aprimorada, e em muitos nunca foi regulamentada. Mas resta intocado, como cláusula pétrea que é, o seu título II, Dos Direitos e Garantias Fundamentais. Seu primeiro capítulo, nos 78 incisos do artigo quinto, enumera os “Direitos e Deveres Individuais e Coletivos”. Seguem-se os capítulos que tratam dos Direitos Sociais, da Nacionalidade, dos Direitos Políticos e dos partidos políticos. Aqui está o cerne da Constituição, o núcleo fundamental do Estado Democrático de Direito, e contra este pilar nenhuma maioria ocasional poderá atentar.
Foi a Constituição que propiciou a construção do país que temos hoje, muito melhor do que o de 1988, apesar de todos os problemas da atualidade. Para torná-la efetiva, nos anos seguintes os três poderes fizeram a sua parte. O Congresso, regulamentando-a e legislando a partir dela; o Supremo, zelando por sua observância e interpretando-a quando necessário; o Executivo, através dos sucessivos governos (uns mais que outros), convertendo em políticas públicas os direitos nela estabelecidos.
Quis o calendário que o aniversário de 36 anos da Constituição caísse neste sábado, véspera de uma eleição municipal. Nunca mais, depois daquela data, deixamos de ter eleições regulares, pelo voto direto e secreto, através de um sistema confiável, que um governante recente tentou sem sucesso, com propósito golpista, desacreditar. Os que irão às urnas amanhã, mesmo não se lembrando disso, estarão homenageando mais um aniversário da Constituição Cidadã.
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Tereza Cruvinel atua no jornalismo político desde 1980, com passagem por diferentes veículos. Entre 1986 e 2007, assinou a coluna “Panorama Político”, no Jornal O Globo, e foi comentarista da Globonews. Implantou a Empresa Brasil de Comunicação - EBC - e seu principal canal público, a TV Brasil, presidindo-a no período de 2007 a 2011. Encerrou o mandato e retornou ao colunismo político no Correio Braziliense (2012-2014). Atualmente, é comentarista da RedeTV e agora colunista associada ao Brasil 247; E colaboradora do site www.quenoticias.com.br