UMA CRÔNICA DE MONTEIRO LOBATO

23 de janeiro de 2018 2630

Não costumo fazer, nos meus livros e artigos, longas transcrições de textos alheios, por entender que citações, por regra, devem ser poucas, e mesmo assim se forem indispensáveis. Abro hoje uma exceção para compartilhar, com os leitores,trechos de uma admirável crônica de Monteiro Lobato, publicada por ele em 1918, há precisamente 99 anos.  Seu título é “A luz do baile”. Trata-se de um elogio à memória do imperador D. Pedro II e uma crítica ao regime político imposto pelo golpe do 15 de Novembro. Tenha-se presente que o autor não era monarquista, era apenas um crítico da república brasileira.

Lobato salientou o papel moralizador extraordinário exercido por D. Pedro II na vida pública brasileira e sobretudo sua obra interrompida de plasmar uma consciência cívica coletiva entre os brasileiros. Lobato comparava metaforicamente o papel de D. Pedro II à luz do baile. Passo a transcrever o próprio texto lobatiano:

         "A sua função [de D. Pedro II] no formar da nacionalidade brasileira não está bem estudada. Era um ponto fixo, era uma coisa séria, um corpo como os há na natureza, dotados de força catalítica. Agia pela presença. O fato de existir na cúspide da sociedade um símbolo vivo e ativo da Honestidade, do Equilíbrio, da Moderação, da Honra e do Dever, bastava para inocular no país em formação o vírus das melhores virtudes cívicas.

"O juiz era honesto, se não por injunções da própria consciência, pela presença da Honestidade no trono. O político visava o bem público, se não por determinismo de virtudes pessoais, pela influência catalítica da virtude imperial. As minorias respiravam, a oposição possibilizava-se: o chefe permanente das oposições estava no trono. A justiça era um fato: havia no trono um juiz supremo e incorruptível. O peculatário, o defraudador, o político negocista, o juiz venal, o soldado covarde, o funcionário relapso, o mau cidadão enfim, e mau por força de pendores congeniais, passava, muitas vezes, a vida inteira sem incidir num só deslize. A natureza o propelia ao crime, ao abuso, à extorsão, à violência, à iniquidade - mas sofreava as rédeas dos maus instintos a simples presença da Equidade e da Justiça no trono.

"Ignorávamos isso na monarquia. Foi preciso que viesse a república, e que alijasse do trono a Força Catalítica para patentear-se bem claro o curioso fenômeno. A mesma gente, o mesmo juiz, o mesmo político, o mesmo soldado, o mesmo funcionário até 15 de novembro honesto, bem intencionado, bravo e cumpridor dos deveres, percebendo, na ausência do imperial freio, ordem de soltura, desaçamaram a alcateia dos maus instintos mantidos em quarentena. Daí o contraste dia a dia mais frisante entre a vida nacional sob Pedro II e a vida nacional sob qualquer das boas intenções quadrienais que se revezam na curul republicana.

"Pedro II era a luz do baile. Muita harmonia, respeito às damas, polidez de maneiras, joias de arte sobre os consolos, dando o conjunto uma impressão genérica de apuradíssima cultura social. Extingue-se a luz. As senhoras sentem-se logo apalpadas, trocam-se tabefes, ouvem-se palavreados de tarimba, desaparecem as joias... Como, se era a mesma gente? Sim, era a mesma gente. Mas gente em formação, com virtudes cívicas e morais em início de cristalização. Mais um século de luz acesa, mais um século de catálise imperial, e o processo cristalizatório se operaria completo. O animal, domesticado de vez, dispensaria açamo. Consolidar-se-iam os costumes; enfibrar-se-ia o caráter.E do mau material humano com que nos formamos sairia, pela criação de uma segunda natureza, um povo capaz de ombrear-se com os mais apurados em cultura.

"Para esta obra moderadora, organizadora, cristalizadora, ninguém mais capaz do que Pedro II; nenhuma forma de governo melhor do que sua monarquia. Mas sobrevém, inopinada, a república. Idealistas ininteligentes, emparceirados com a traição e a inconsciência da força bruta, substabelecem-se numa procuração falsa e destroem a obra de Pedro II 'em nome da nação' (...) A nação não reage, inibida pela surpresa, e também porque lhe acenam logo com um programa de maravilhas, espécie de paraíso na terra...

“De norte a sul o povo lamuria a sua desgraça e chora envergonhado o que perdeu. Tinha um rei. Tem sátrapas. Tinha dinheiro. Tem dívidas. Tinha justiça. Tem cambalachos de toga. Tinha parlamento. Tem antessalas de fâmulos. Tinha o respeito do estrangeiro. Tem irrisão e desprezo. Tinha moralidade. Tem o impudor deslavado. Tinha soberania. Tem cônsules estrangeiros assessorando ministros. Tinha estadistas. Tem pegas. Tinha vontade. Tem medo. Tinha leis. Tem estado de sítio. Tinha liberdade de impressa. Tem censura. Tinha brio. Tem fome. Tinha Pedro II. Tem… Não tem! Era. Não é.  (...)”

 

E aqui concluo a longa transcrição lobatiana, que continua terrivelmente atual no Brasil de 2017. Destaquei apenas trechos de um texto muito maior, que foi publicado na "Revista do Brasil", n° 36, de dezembro de 1918 (vol. IX, ano III, pp. 387/391). Pode também ser encontrado na internet, em: solepro.com.br/Artigos/.../A%20Luz%20do%20Baile.pdf

 

 

 

 

ARMANDO ALEXANDRE DOS SANTOS é historiador e jornalista profissional, membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e da Academia Portuguesa da História.