A história por trás do Parque Germânia: gestão privada e fim de área de preservação ambiental

3 de fevereiro de 2018 1012

 

Seis quadras esportivas, uma cancha de bocha, três playgrounds e seis hectares de gramados que correspondem a áreas de preservação ambiental. Às 9h da quinta-feira (1°), o Parque Germânia está quase deserto. Um grupo de oito idosos com tênis de corrida e meias brancas acima dos tornozelos se destaca, caminhando pelo calçadão. Ninguém está sentado no mais de 100 bancos laranjas espalhados pelo espaço. Cerca de dez pessoas passeiam com seus cachorros. Bruno, de 4 anos, é a única criança no local – estava aprendendo a andar de bicicleta. “Mas de tarde fica mais cheio, quando chega a ‘gurizadinha'”, afirma Leandro Bastos, seu pai. 

A ‘gurizadinha’ são jovens de comunidades da Vila Jardim e da Vila Ipiranga, nas proximidades do parque. Leandro não leva Bruno ao parque de tarde e nem nos finais de semana. “Lota muito, né.” Apesar de pertencer ao Bairro Jardim Europa, o Parque Germânia é frequentado por um público diversificado em função dos bairros que estão ao redor deste novo empreendimento habitacional. “Só que, apesar do convívio em um mesmo espaço físico, há um distanciamento no espaço social promovendo diferentes relações entre os diferentes públicos que se apropriam do parque”, afirma o arquiteto e doutorando em Planejamento Urbano e Regional William Mog.

Parte do arroio que compõe a área do Jardim Europa. Foto: Joana Berwanger/Sul21

Mog é autor de uma pesquisa que investiga o convívio plural dentro de um parque intencionalmente “cercado e fechado”. Segundo o artigo, dentro deste panorama, se destaca um grupo que destoa dos demais. Apesar de residirem ao lado do parque e dentro do Jardim Europa, os moradores de algumas vilas da região estão distantes socialmente dos demais habitantes do bairro. “Essa condição resulta de uma relação entre posição no espaço social e localização no espaço físico que evidencia a diferença deste grupo comparado com os demais”, explica Mog.

Segundo ele, isso gera uma situação contraditória em que as recentes transformações propostas pelo bairro Jardim Europa, destinado às classes mais abastadas, acabaram resultando em um ganho de localização para os moradores das ocupações próximas. “É público mas é cercado. A cerca, na verdade, é a melhor forma de visualizar essas fronteiras sociais que estão sendo construídas aos poucos e de forma pouco tangível.”

De acordo com Mog, as fronteiras surgem e desaparecem no parque durante o dia. “Assim como as delimitações do processo de expansão urbana”, explica, afirmando que áreas que antigamente eram periféricas e isoladas em relação ao centro original das cidades e, portanto, costumeiramente habitadas pelos pobres, acabam se tornando parte de novas centralidades em processos cíclicos. “Volta e meia o mercado imobiliário esbarra em uma população de baixa renda onde quer construir seus grandes empreendimentos – e eles sempre vão ser os alvos não intencionais.”

Ao fundo, prédio do condomínio Risierva Cipriani. Foto: Joana Berwanger/Sul21

O primeiro parque fechado no primeiro bairro planejado 

Em termos de pioneirismo, o território do Jardim Europa também é considerado o primeiro empreendimento planejado a ocupar uma área de preservação ambiental. O histórico de transformações começa quando a região ainda era periferia, em 1979. Naquele ano foi aprovado o 1º Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano (PDDU) que, entre diversas alterações, registrou o perímetro como território de preservação – por conta do arroio que corre pelo subsolo.

Parte visível do arroio que justificava a designação de área de proteção ambiental. Foto: Joana Berwanger/Sul21

Porém, a determinação durou pouco. A partir da década de 1980, a especulação na região começou a aumentar por conta da construção do Shopping Iguatemi, inaugurado em 1983. Segundo Mog, o centro comercial foi erguido em cima de parte do arroio. “Daí se inciou um processo para institucionalizar uma nova atribuição para a área.” Em 1999, o Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano Ambiental (PDDUA) oficializou o que, segundo o pesquisador, algumas construtoras vislumbravam: destinou grande parte da área para construções habitacionais.

Assim, começou o planejamento do que resultaria no Bairro Jardim Europa. Manuela Schneider, socióloga do Instituto Trocando Ideias, baseou sua dissertação de mestrado na construção dos empreendimentos. “Eles criaram um produto para uma classe específica, porque esse mercado só vê o consumidor por classe”, declara. São dez condomínios fechados, com mais de 15 torres e centenas de apartamentos contornando o parque. Todos eles contam com ampla infraestrutura. “São equipados com todos os ‘gourmets’ e ‘fitness’ que se pode pensar”, diz a socióloga.

Por conta da delimitação de área de preservação, a construtora Goldztein, responsável pelos empreendimentos, entregou como contrapartida um parque de 40 hectares. “Mas o Germânia foi cercado, para ser mais fácil de administrar”, aponta Manuela. Segundo a socióloga, a construtora se comprometeu com sua gestão pelos primeiros 10 anos.

De acordo com Manuela, se não fosse a alta densidade demográfica da Zona Norte, “teríamos áreas fechadas enormes; como as dos condomínios da Zona Sul”. Na pesquisa de Mog, denomina-se essa tendência como “ilhas habitacionais” – fronteiras cercadas entre o espaço dos condomínios e as vias de acesso promovendo uma desarticulação entre o espaço privado e o espaço público. “E não é à toa que todos os nomes de tudo da região remetem ao contexto europeu”, destaca Manuela.

A cidade ideal

Todo o perímetro do parque é cercado, inclusive suas seis entradas, que abrem os portões às 06:30 e fecham às 20:00. Foto: Joana Berwanger/Sul21

No início dos anos 2000, quando Manuela realizou sua dissertação, trabalhava na agência publicitária responsável pelo planejamento e pela campanha do Jardim Europa. A operação foi inciada por meio de uma pesquisa qualitativa, entrevistando, principalmente, comunicadores da Capital. “Qual a cidade ideal para você?”, perguntavam os entrevistadores. Eles focavam em núcleos de moradores dos bairros Moinhos de Vento e Rio Branco, considerados de ‘alto padrão’. “A grande maioria resgatava influências de viagens que fizeram para a Europa, de reportagens que leram ou que assistiram de cidades onde se podia caminhar livremente, sem problemas de segurança e com ampla infraestrutura”, explica Manuela.

Daí, saíram os nomes dos empreendimentos: Risierva Cipriani, Uffizi Gallerie, Parc Vienne, Gallerie Louvre, Gallerie Prado, Vitra, The Highlands, Kárpathos, Oslo e Alizé Parc Residence. Além do nome do próprio Parque Germânia e da região para englobar todos os empreendimentos – Jardim Europa.

O problema é que os apartamentos não vendiam. “A construtora percebeu que mirou errado. O pessoal que já tinha apartamentos ótimos em bairros de renome não queria passar pela dor de cabeça de se mudar. Então, focaram nos novos fluxos, originados pela abertura de novas vias”, elucida a pesquisadora.

Essas novas vias, além de venderem unidades para quem habitava bairros como o Lindoia, Higienópolis e Floresta, também proporcionou uma nova regra de circulação, fazendo com que os moradores das comunidades do entorno tivessem acesso à região.

Posse sobre o público

Oficialmente, o parque foi inaugurado em 2006. Foto: Joana Berwanger/Sul21

Desde o começo de seu planejamento, ficou acordado que o Parque Germânia seria destinado para a administração pública. Porém, os primeiros anos do parque foram marcados pela presença de um posto da Brigada Militar e de um “prefeito”, que encaminhava as demandas dos moradores do entorno em relação ao que acontecia nos espaços recém construídos. “É a privatização escrachada do bem público”, afirma Manuela. Na época, de acordo com a pesquisadora, considerava-se o pagamento de uma taxa de manutenção do Parque nas cobranças de condomínio para que, no futuro, uma ação judicial pudesse ser concretizada dando posse do Germânia para os condôminos. “Algo totalmente absurdo, que, por motivos óbvios, não foi levado adiante”.

Em 2016, o Jardim Europa deixou de ser um nome apenas publicitário para se tornar, efetivamente, um bairro. No mesmo ano, o acordo de administração da Goldztein sobre o Germânia acabou, e desde lá, a Secretaria Municipal do Meio Ambiente (Smam) assumiu a gestão. Hoje, são quatro funcionários que trabalham para preservar a área verde. Cézar Barreto é um deles. Na manhã da quinta-feira, apenas ele um colega faziam a vistoria da área. “Mas é bem tranquilo, já que tem esse gramado grande dá pra ver tudo.” “Foi desenhado para se ver de cima”, resume Manuela.

Confira mais fotos:

Foto: Joana Berwanger/Sul21
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