Delfim: onde acaba a Economia?

26 de março de 2018 644

O ex-ministro e ex-deputado Delfim Netto é um personagem dos mais interessantes, quase sempre presente nos debates sobre a política e a economia do País. Deixou sua marca forte no período do “Milagre”, na passagem dos anos 1960 para os 1970, no comando da maior taxa média de crescimento da história brasileira, 11% ao ano, algo impensável no ambiente atual. Desde aquele momento até hoje ele nega ter proferido a frase que sintetizava o modelo da época: “Primeiro o bolo tem que crescer, para depois ser distribuído”. Como se sabe, o bolo cresceu bastante e nunca houve sequer a preocupação com a distribuição. Bem pelo contrário, havia uma clara intenção de manter uma vergonhosa concentração da renda e riqueza nas mãos de poucos. A lógica da concentração presidia o modelo em tempos de ditadura. A negação da autoria da frase é compreensível; ela identifica o modelo de exclusão, o que, por si só, não é nada simpático, especialmente para quem anos depois iria pedir votos para mais de um mandato de Deputado Federal por São Paulo.

Nos anos seguintes ao “Milagre”, durante o Governo Geisel, Delfim esteve afastado de cargos de comando na economia brasileira; foi embaixador em Paris. Voltou à cena doméstica no Ministério da Agricultura no início do Governo Figueiredo. Neste momento Simonsen foi o Ministro do Planejamento, mas durou apenas seis meses no cargo; pregando austeridade e medidas de controle do crescimento, não angariou apoio e caiu. Delfim, no Ministério ao lado, estava só esperando abrir a vaga e assumiu. A lembrança dos tempos de crescimento acelerado ajudou-o a barganhar o posto. Sempre muito esperto, o novo ministro não bateu de frente com os que o apoiavam, mas logo entendeu que Simonsen não estava equivocado. O estrangulamento do financiamento externo à economia brasileira logo iria se impor e a austeridade era necessária.

Delfim fez então o que melhor sabia fazer, um zigue-zague com a política econômica, com medidas as mais diversas, às vezes parecendo contraditórias, e um emaranhado de explicações que variavam de acordo com o público a quem se dirigiam. Mas o sentido geral não podia ser escondido; cada vez foi ficando mais claro que rumávamos para uma recessão intencionalmente provocada que durou três anos (1981-183) e fez muitas vítimas. Até hoje, quando perguntado, Delfim declara que “nós fizemos o ajuste e eu me orgulho disto”. Observe-se que ele se refere ao “ajuste” e não usa a palavra recessão, politicamente indigesta. A seu favor, como que a acomodar o uso da palavra “ajuste”, registre-se o nítido esforço de completar o pacote de obras do II Plano Nacional de Desenvolvimento (II PND), que estava no final – atrasado – e nos legou obras importantes.

Depois do ciclo militar Delfim nunca mais ocupou ministérios, mas foi deputado federal no bloco dos partidos mais conservadores e sempre esteve colado no poder, no mínimo como conselheiro, mesmo nos tempos dos Governos do PT. Continuou muito próximo das entidades empresariais mais importantes do País, atuou como consultor e se manteve firme no debate da política econômica através de vários meios, entre eles as colunas de jornais e revistas. Eu costumava recomendar aos estudantes de Economia que lessem suas colunas, no mínimo como exercício metodológico, para ver a forma da argumentação e verificar eventuais truques lógicos.

Pois bem, na coluna da última terça feira no jornal Valor (20.3.18, p. A2) Delfim se despediu, justamente no momento em que completa 90 anos. E na despedida falou de produção e distribuição, suas antigas paixões. Falou da relação capital-trabalho e da produtividade, esta como indicador de desenvolvimento econômico. Contudo, ao referir estas duas relações, disse que “Aqui termina a economia. Como se distribuirá o produzido entre o ‘capital’ e o ‘trabalho’ é uma decisão de quem detém o poder político. Como toda decisão política, ela tem uma margem de arbitrariedade que gera consequências.”

Sobre a distribuição ser uma decisão política não resta dúvida, em qualquer tempo e em qualquer lugar. A frase famosa do período do “Milagre” e de autoria não admitida está registrada na história, justamente para confirmar a noção das escolhas políticas. O humorista Jô Soares, que, aliás, imitava Delfim na época do início do Governo Figueiredo, criou um personagem que citava frases e as atribuía a determinada pessoa. No programa semanal de TV um interlocutor o advertia de que tal pessoa nunca havia dito tal frase e o personagem de Jô respondia que “… não disse, mas devia ter dito”. Aplica-se exatamente a Delfim: se não disse que “primeiro o bolo tem que crescer, para depois ser distribuído”, devia ter dito. Ou melhor, nem precisava ter dito, porque operou a política econômica claramente de acordo com esta idéia.

Ative-me, porém, a outra parte do texto, quando, ao falar da relação capital-trabalho e da produtividade, ele diz que “Aqui termina a economia” e o resto seria uma questão [apenas] política, de distribuição. Não, a distribuição também é um tema dos mais relevantes na discussão da Economia, para além das suas implicações políticas. A configuração da distribuição da renda vai determinar a forma e as possibilidades do consumo e do investimento. Consequentemente, determinará a produção, como num ciclo lógico que não tem um final. Veja-se o contraponto entre o período do “Milagre”, com concentração, e o período Lula, com distribuição de renda. As diferentes opções políticas de cada momento sobre a distribuição influenciaram o crescimento de diferentes mercados e regiões, gerando consequências econômicas bem diversas e conhecidas. Portanto, a Economia não acaba no âmbito da produção. Continuo achando que a leitura atenta das colunas de Delfim era um bom exercício metodológico.

(*)  Flávio Fligenspan é professor do Departamento de Economia e Relações Internacionais da UFRGS.