'Filhos da quimio': Vozes de quem daria (e deu mesmo) a vida por um filho

5 de março de 2018 826

Gravidez e cancro. Dois mundos que não combinam. Duas dimensões que despertam sentimentos tão contraditórios. Duas realidades que não encaixam na mesma equação. Como se recebe um diagnóstico de cancro? Pior, como se reage quando se sabe que um tumor cresce no organismo enquanto no ventre se ‘guarda’ um bem tão precioso – uma vida? Foi isso que Nelson Marques, jornalista do Expresso, quis saber e traz agora a público no livro ‘Filhos da quimio’. Com a inquietude que lhe flui no ADN, procurou cinco histórias de cancro na gravidez. 

O cancro - “o imperador de todos os males, o rei do terror” - não escolhe idades, culturas ou credos religiosos. Chega de surpresa, sem se fazer anunciar. É inoportuno, impiedoso e cruel. Sem dó nem piedade, vira a vida do avesso. Os sorrisos, outrora genuínos, desvanecem-se e cedem o lugar às lágrimas, à tristeza e ao medo; medo que ele vença. E por (tantas) vezes vence, de facto, a ‘guerra’.

E quando o cancro chega numa das fases mais felizes da vida? Afinal, uma das suas facetas é a imprevisibilidade. Esta é a história de Raquel e de tantas outras mulheres que se cruzaram com esta doença numa das fases mais felizes e emotivas das suas vidas: a gravidez. Um dia, Raquel descobriu que estava grávida; o seu sonho tinha-se tornado realidade: no ventre gerava uma vida. Era, como diria, Sophia de Mello Breyner, “a Primavera que esperava”. Mas não tardaria até que esse sonho fosse assombrado por uma ‘nuvem negra’, o cancro da mama. Neste momento, uma mãe escolhe lutar pela sua própria vida, ou pela do filho?

Raquel escolheu a vida, a de Isabel. Para esta jovem mãe não havia outra possibilidade. Interromper a gravidez não era opção. “Quando nos dizem que temos cancro, achamos que é engano, que há ali qualquer equívoco. Estava grávida, como poderia ter cancro? Na minha mente não fazia qualquer sentido”, recordou, na apresentação da obra de Nelson Marques, na Fundação Champalimaud.

Notícias ao Minuto'Filhos da quimio', de Nelson Marques © Miguel Veterano Júnior/Filhos da quimio

Em vez de se preparar para o parto, Raquel teve de se preparar para uma cirurgia de remoção do tumor. Caiu-lhe o cabelo, enfrentou horas de quimioterapia, mas tinha um foco: levar a gravidez até ao fim e ter Isabel nos braços. Nesse dia, quando a aconchegasse no regaço, perceberia que tudo tinha valido a pena. Por aquela criança, Raquel nunca perdeu a esperança. Raquel pôde conciliar os tratamentos com a gravidez, uma realidade que Nelson Marques explica em ‘Filhos da quimio’. Esta é a história de uma mãe guerreira; esta é a história de uma vitória contra o cancro. E, num discurso emocionado que não deixou imune a plateia, Raquel agradeceu a Isabel por ter sido a “âncora” que a agarrou à vida. Pela filha, Raquel lutou. E venceu.

Já a pequena Isabel está longe de imaginar a dura caminhada que fez até ver a luz do dia. Cresceu preservada pelo ventre da mãe, o seu escudo protetor. Hoje, é visivelmente uma criança feliz. De sorriso fácil e de uma ternura desmedida, ouviu o discurso que a mãe lhe dedicou ali, na Fundação Champalimaud, onde foi acompanhada por uma equipa de especialistas. Nos braços traz consigo a Minnie e o Mickey e recorda-nos que esta, à sua maneira, é também uma história de contos de fada, porque, apesar dos contornos sinuosos, teve um final feliz.

Em ‘Filhos da quimio’, Nelson Marques narra, para lá da história de Raquel, a de Anabela, que deixou um tumor crescer para ser mãe, a de Liliana, que também fez quimioterapia durante a gravidez, a de Gintare, que lutou até à morte para o filho nascer, e a de Michelle, que foi mãe enquanto tomava medicação contra a leucemia.

Fundação Champalimaud, onde tudo começou

Foi precisamente naquele que é considerado um dos berços da ciência em Portugal, a Fundação Champalimaud, que Nelson Marques teve conhecimento do caso de Raquel. E, por isso, naturalmente o livro ‘Filhos da quimio’ foi apresentado nesta casa do conhecimento.

Os casos de Raquel, de Anabela, de Liliana, de Gintare e de Michelle, assim como o de todas as pacientes em circunstâncias semelhantes, são acompanhados de forma peculiar por toda a equipa da Fundação. A garantia foi dada por Leonor Beleza, presidente da Instituição, que não deixou de marcar presença no evento de lançamento, moderado por Mafalda Anjos, diretora da revista Visão. 

Notícias ao MinutoApresentação do livro 'Filhos da quimio'© Inês Pinheiro

Ao ler “estas cinco lindas histórias”, acrescentou a ex-ministra, “temos a sensação de que estamos a entrar na vida destas mulheres”. E ‘Filhos da quimio’ é o exemplo categórico de que a “ciência e a medicina vão avançando”, já que retrata casos em que, “de alguma forma, houve sucesso”.

Leonor Beleza aproveitou ainda a oportunidade para dar os parabéns ao autor da publicação, pelas “histórias de amor absolutamente extraordinárias” que relatou. A responsável não deixou ainda de alertar para a importância da “história do tempo”, acrescentando que “não nos devemos deixar levar pelos medos e quanto mais rapidamente atuarmos na doença melhor”.

"Este livro não é meu. É delas"

“Cinco histórias, cinco mulheres. Enfrentaram o que nenhuma imaginou enfrentar na vida”, começou por explicar Nelson Marques. Para o jornalista, ‘Filhos da quimio’, mais do que uma obra da sua autoria, é um livro das protagonistas: “Este livro não é meu. É delas”.

Sendo este um tema de uma sensibilidade profunda, Nelson Marques, em declarações ao Notícias ao Minuto, explicou que em trabalhos “com uma carga emocional muito forte, como foram estas reportagens que começaram no Expresso e terminaram neste livro, é inevitável que a linha que separa o homem do jornalista se torne muito ténue. É impossível que eu próprio não me emocione por vezes com os testemunhos tão cheios de vida destas pessoas. Mas quando me sento a escrever, a emoção que transpira para as páginas é a destas mulheres e destes homens, não a minha”.

Para narrar as histórias destas cinco mulheres de coragem, Nelson Marques confrontou-se com a necessidade de pedir a todas as protagonistas do livro que revivessem as histórias que tanta mágoa lhes causaram, sentindo-se “por vezes um vouyeur, outras um parasita”. 

Conseguir contar estas histórias com o detalhe que merecem, acrescentou o autor, “escavando muitas vezes nas profundezas da alma destas pessoas, mas sem lhes causar mais dor do que aquela que já tiveram de suportar, foi sempre a minha maior angústia. Espero nunca ter passado essa linha ténue, mas houve momentos em que senti que esse foi um equilíbrio precário".

Com efeito, Nelson Marques recorda-se, por exemplo, do primeiro momento em que falou com Liliana, uma das mulheres cuja história é contada no livro. "Acabara de descobrir que tinha cancro poucos dias depois de ter tido a notícia que estava grávida e, quase sem tempo para processar aquilo tudo, já tinha um jornalista dentro de casa. Foi ela que se disponibilizou para contar a sua história - esperando, com isso, inspirar outras mulheres que possam encontrar-se na mesma situação - mas é inevitável que me questionasse na altura sobre se não estava a causar-lhe mais dor".

A especificidade de cada história e as particularidades de cada caso clínico fazem com que cada um destes relatos seja único.  Nelson Marques foi perentório ao assumir que carrega em si “um pouco de cada umas destas pessoas”, sendo difícil escolher um caso que o tenha tocado especialmente. Desde “o sorriso radioso da Raquel, estampado na capa do livro, que é um farol de esperança para qualquer pessoa com cancro; a força inspiradora do Cândido, a quem a vida deu um novo amor, o filho, Salvador; a fé da Liliana, que a guia nos horas mais difíceis; a serenidade da Michelle, que tem duas filhas lindas - e saudáveis - quando a ciência talvez a aconselhasse a não ter nenhuma; e a Anabela, tão pequenina ao lado do marido, o Ricardo, mas com uma coragem sem medida”.

Já questionado sobre a existência de uma próxima obra literária, o jornalista assumiu que é “péssimo” a terminar livros, recordando, inclusive, que um “um amigo editor, o José Prata,” lhe disse um dia que nunca escreveria um livro, precisamente porque está sempre a pensar em ideias novas antes de acabar as que começou. "Tenho três livros inacabados na gaveta: um de viagens, um de crónicas e outro que começa também numa história que contei numa reportagem. Tenho agora vontade de escrever um romance - já tem título e muitos parágrafos escritos no telemóvel -, mas falta-me tempo e, sobretudo, coragem para o fazer. Aterroriza-me a ideia de ser um daqueles escritores que passa a vida inteira de volta do mesmo livro. Acho que mais depressa vou plantar uma árvore”, rematou.