Índios waiãpis fazem a festa, animados ao sabor do fermentado caxiri
O coração da floresta amazônica também tem festas que atravessam a noite, regadas a caxiri, uma bebida fermentada produzida artesanalmente pelos índios waiãpi.
Membros da minúscula tribo localizada no leste da Amazônia erguem as cabaças à altura dos rostos pintados e engolem a bebida.
Normalmente esvaziando o recipiene de um só gole, eles vão em busca de doses extras, retiradas de um enorme tronco oco similar a uma canoa, cheio de cerveja.
Os indígenas da aldeia Manilha, vestidos com tangas vermelhas, pinturas corporais em preto e vermelho e faixas feitas de contas brilhantes, ficam embriagados rapidamente.
A celebração, que começa logo após o almoço e invade a noite de céu estrelado, homenageia o espírito do rio Waiãpi, uma serpente sucuri que exige constante apaziguamento.
Mas os waiãpi precisam de poucas desculpas para organizar festas regadas a bebidas como esta, preferencialmente acompanhada de cantoria.
"Quando você bebe, sua visão muda. Você perde a vergonha. A felicidade vem e seus pés começam a se mover", diz Japarupi Waiãpi, um cacique de 45 anos, visitante de uma comunidade vizinha.
A música acompanha as rodadas de caxiri.
Meia dúzia de homens tocam flautas de bambu, outros cantam, e todos se revezam no sopro de um instrumento de sopro gigante feito de embaúba com três metros de comprimento.
"Nós tocamos as flautas para que a sucuri fique feliz e não agarre as pessoas quando nada", explica Japarupi Waiãpi. "O rio é muito importante. Nós o usamos para a pesca, para o banho, para o lazer".
Limpando a boca depois de um gole de caxiri, o cacique waiãpi pensa em outro motivo lógico porque o espírito do rio merece homenagens.
"Se não houvesse rio, não haveria festa", resume.
- Nos bastidores -
Os waiãpi são autossuficientes, capazes de fazer de tudo sem energia elétrica, telefones, carros, roupas em excesso e dinheiro. Mas enquanto tudo o que precisam para sobreviver pode ser encontrado na floresta, a vida cotidiana como caçadores e fazendeiros de subsistência pode ser extenuante.
O caxiri é seu único luxo.
Às vezes o dia na tribo começa com uma reunião casual e pinturas em casais. Outras vezes, é algo elaborado, uma festa de arromba, com convidados de outras aldeias e que dura toda a noite.
"Essas bebedeiras com caxiri foram mencionadas por muitos viajantes na Guiana Francesa nos anos 1800. Não há dúvida de que se embebedar era uma importante tradição waiãpi", escreveu o antropólogo Alan Tormaid Campbell, que viveu com os waiãpi nos anos 1970, aprendeu seu idioma e escreveu em 2002 um livro intitulado "Getting to know Waiwai" (Conhecendo os Waiwai, em tradução literal).
Nos bastidores, no entanto, é um trabalho hercúleo fazer a tradição acontecer. E as responsáveis por isso são as mulheres, que bebem caxiri em quantidades menores.
O caxiri é um fermentado preparado a partir da mandioca, com versões bege ou roxa, com diferentes níveis de potência.
A mandioca, também usada para fazer a tapioca, é colhida de uma pequena plantação em uma clareira na floresta nos arredores de Manilha, onde, sem cobertura vegetal, o sol arde ferozmente.
As mulheres chegam lá após cruzarem um rio, caminhando por trilhas com mochilas altas feitas de folhas de palmeira, que elas enchem com os tubérculos, antes de voltar carregando a carga surpreendente.
De volta à aldeia, começa o laborioso processo de ralar, ferver, amassar, comprimir, cozinhar, fermentar e transformar a mandioca. A bebida resultante se assemelha mais a uma sopa do que a cerveja.
Eriana Waiãmpi, de 48 anos, que como as outras mulheres da expedição, tinha os seios nus e carregava um facão, ignora a ideia de que isso possa não valer o esforço.
"Somos mulheres. Somos guerreiras por carregar mandioca", diz ela.
- Sem caxiri, sem futuro -
Em questão de horas, os 'baladeiros' de Manilha consumiram toda a canoa de caxiri. Mas para alegria de todos, uma segunda cheia da cobiçada bebida aguarda no outro extremo da aldeia.
Os músicos, cada vez mais entusiasmados, reunidos e abraçados uns aos outros, repetem as mesmas duas notas em um ritmo incansável e hipnótico.
Dançando em um movimento ritmado, eles caminham pela aldeia como flautistas loucos.
Primeiro, visitaram o idoso cacique de Manilha que, recostado em sua rede, os acompanha na cantoria. Em seguida, visitaram as mulheres, que bebem de forma menos frenética.
Ao por-do-sol, a escuridão engole toda a aldeia, deixando visíveis apenas algumas fogueiras. Mas a festa continua.
Os músicos prosseguem tocando e dançando, enquanto homens e mulheres riem e contam histórias em torno de uma fogueira central. Um pouco alto, um indígena, com o corpo coberto de desenhos tradicionais waiãpis, interpreta uma cena de caça, esticando os braços para demonstrar o tamanho de alguma presa recente.
Aka'upotye Waiãpi, 43 anos, o filho mais velho do cacique, observa, satisfeito.
O caxiri não é apenas uma forma de se embebedar, ele explicou. É uma forma de vincular os waiãpi a seus costumes antigos e de evitar que os jovens caiam nas tentações das cidades brasileiras.
"Se não mantivermos nossa cultura através do caxiri, os jovens vão beber bebidas não indígenas", explicou. "Se perdermos o caxiri, perdemos nossa cultura".
À medida que as estrelas se espessam sobre a floresta tropical e a sinfonia de sapos ofusca o silêncio, os convidados começam a se retirar para suas redes.
Alguns vão acordar com dor de cabeça, mas isso não é motivo de preocupação, explica Japarupi Waiãpi. A tribo tem seu próprio remédio: uma iguaria da culinária nortista, o tucupi - água de goma extraída da mandioca com pimenta.
"Beba isto", ele disse, "e zero ressaca".