João Raposo. “A Diabetes é uma das maiores ameaças à sustentabilidade do SNS e da economia do país”
Em 2021, dados do Observatório da Sociedade Portuguesa de Diabetologia traduziam a realidade da doença em Portugal. Só em custos são 2128 milhões de euros ao ano, mais de 10% do total do orçamento para a Saúde. Uma Estratégia Nacional é urgente. Esta e outras questões vão ser debatidas no XX congresso da sociedade.
Portugal continua a ser dos países da União Europeia com maior taxa de prevalência da Diabetes. Porque não se consegue inverter esta tendência?
Essa é a principal questão. E se isso acontece é porque, se calhar, não temos tido uma boa estratégia ou não temos tido uma estratégia adequada e eficiente para a resolução do problema da Diabetes. Os números demonstram isso.
E quais são os números?
Portugal tem cerca de 1,2 milhões de pessoas com Diabetes. Destas, entre 800 a 900 mil estão diagnosticadas e são acompanhadas, o que significa também que continuamos com uma proporção muito elevada de casos não-diagnosticados. Mas há outra grande dificuldade: é que não sabemos ao certo quantas pessoas têm Diabetes Tipo 1, o que acontece por não haver rastreio, apesar das recomendações que já foram feitas pela Assembleia da República no sentido de este registo ser disponibilizado aos serviços de saúde. É preciso termos a noção de que estes dados são importantes para a planificação dos cuidados de saúde, senão como é possível planear cuidados se não sabemos quantas pessoas estão a ser tratadas para a Diabetes Tipo 1? Para além dos 1,2 milhões com a doença, estima-se que haja mais 2,5 milhões de pessoas com pré-diabetes, o que quer dizer que têm risco muito elevado de vir a desenvolver a doença. O que também tem duas implicações: uma tem a ver com os riscos diretos na saúde destas pessoas, como o desenvolvimento de complicações cardiovasculares (maior rico de enfartes e de AVC); a outra tem a ver com o planeamento dos cuidados, porque a população pré-diabética deveria ser o alvo preferencial para a tomada de medidas, para que não viesse a desenvolver a doença.
Perante estes números, o que é preciso fazer?
Precisamos de uma Estratégia Nacional. Quando defendo isto não estou a excluir outras patologias, mas é urgente abordar de forma especial as situações que têm um impacto significativo no país, e a Diabetes é uma delas. Não só pelo número de pessoas que atinge, pelo custo que implica o seu tratamento, mas também pelo potencial crescimento da doença nos próximos anos. Só isto são razões mais do que suficientes para se pensar numa abordagem especial para a doença.
Falamos de que custos?
Em 2021, os dados publicados no relatório do Observatório da nossa sociedade davam conta de que os custos com a Diabetes já representavam mais de 10% do total da despesa em Saúde, atingindo os 2128 milhões de euros ao ano (em 2023, o OE para a Saúde foi de 15 mil milhões de euros, em 2024 é de 15 800 milhões. Em termos de economia também podemos dizer que estes custos representam 1% do PIB nacional. E só estamos a falar de custos diretos, tratamentos, internamentos e tratamento das complicações, não está aqui incluído o custo com a prevenção, por exemplo. Portanto, do orçamento para a Saúde retira-se todos os anos para tratar a Diabetes cerca de 430 milhões de euros para medicamentos, 77 milhões para dispositivos de utilização, 310 milhões para hospitalizações e 3,5 milhões em bombas de insulina. Só isto representa quase os 10% da despesa total da Saúde, e, como digo, não estão aqui incluídos os custos com a prevenção ou com as incapacidades que a doença provoca, como o absentismo dos doentes e até dos seus cuidadores.
A Diabetes é uma das doenças crónicas com mais custos para o país?
É difícil dizer-se isso, porque quando falamos de doenças crónicas e de mortalidade a Diabetes não é apontada como uma doença de elevada mortalidade, porque os seus doentes morrem sobretudo das complicações cardiovasculares que desenvolvem. Por isso, quando falamos de causas de mortalidade falamos, em primeiro lugar, das doenças cardiovasculares, mas estamos a esquecer que a Diabetes é um dos principais fornecedores destas doenças - mais de 50% dos doentes cardiovasculares têm Diabetes. Quando se fala da mortalidade global no país diz-se que cerca de 4% foi devido à Diabetes.
Do total de mortes pela Diabetes, 10,5% são antes dos 70 anos. Perdem-se muitos anos de vida?
As pessoas com Diabetes morrem, em média, oito anos mais cedo do que as pessoas sem a doença. Há vários estudos, nomeadamente feitos nos EUA, que mostram, por exemplo, que a esperança média de vida de uma criança com Diabetes é encurtada em cerca de 15 anos face a uma criança sem Diabetes Tipo 1. Portanto, isto representa o alto impacto que a doença tem na vida das pessoas. O mesmo acontece com a elevada incapacidade que a doença provoca, que é a principal causa de amputações (2500 por ano) e da doença renal no país.
Se é assim, que estratégia faz falta a Portugal?
Em primeiro lugar, precisamos de uma estratégia que não poderá apostar mais na prevenção do que no tratamento das pessoas. Portanto, o que temos de definir é uma estratégia com objetivos mensuráveis a curto, médio e longo prazo, determinando logo qual o padrão das pessoas diagnosticadas com Diabetes e se temos equipas de saúde com recursos suficientes e devidamente habilitadas. Em Portugal, os doentes têm acesso à inovação nos medicamentos e nos tratamentos, mas continuamos a gastar muito dinheiro nalgumas rubricas, o que significa que estamos a deixar os doentes avançarem muito para as formas mais graves da doença. O que quer dizer que qualquer estratégia nacional tem de ter uma dimensão mais eficiente para o diagnóstico e para a intervenção precoce. Quanto mais cedo se diagnosticar a pessoa com Diabetes melhores resultados obteremos em saúde e menos dispendioso será o seu tratamento. Só que, para isto, é fundamental haver o acompanhamento adequado dos doentes, senão continuaremos a gastar o mesmo.
Porque diz isso?
Porque corremos o risco de considerar que, com o diagnóstico precoce, tudo passa pela prescrição simples do medicamento, não sendo preciso fazer mais nada, quando esta é a altura certa para uma intervenção multidisciplinar. O diagnóstico precoce é a altura certa para que as pessoas consigam mudar aspetos da sua vida que permitirão melhores resultados com a medicação, não sendo preciso adaptá-la no futuro perante formas mais graves da doença. Portanto, qualquer estratégia nacional deve prever um aumento do investimento no diagnóstico precoce e na capacitação dos recursos nos Cuidados Primários para que haja um acompanhamento adequado dos doentes. Outra dimensão que a estratégia deve ter é a da prevenção, sim, mas também não podemos continuar a pensar que esta se faz só através de campanhas sobre alimentação saudável e atividade física. Temos de pensar numa estratégia nacional que promova uma cidade saudável. Precisamos, por exemplo, de ambientes de trabalho saudáveis.
O que significa ambientes de trabalho saudáveis? Refere-se à alimentação dentro das empresas ou a outros fatores?
A vários tipos de fatores. Em primeiro lugar aos nossos horários de trabalho. Estamos sempre a comparar-nos aos países da Europa do Norte, mas continuamos com horários de trabalho péssimos que nos impedem de fazer atividade física ou até de adotar uma alimentação mais saudável, que não seja a mais rápida. Isto é um problema e, em tempos de campanha, estes temas deveriam ser abordados. O que quero dizer é: será que as empresas não podem ter mais responsabilidades na promoção de uma alimentação saudável dentro do seu espaço? Será que não podem ter responsabilidade também na promoção da prática de exercício físico dentro da própria empresa? Será que o Estado não pode ajudar as empresas com a definição de uma estratégia nacional e políticas que integrem regras como horários mais flexíveis? Há exemplos de empresas em que isto acontece, mas o nosso problema é que saltamos de projeto-piloto para projeto-piloto sem nunca conseguirmos escalar para um projeto nacional.
Este vai ser um dos problemas no futuro, se quisermos travar a doença vamos ter de pensar numa estratégia em que o coletivo, como as empresas, e o individual, o cidadão, vão ter as suas responsabilidades?
É claro que vamos continuar a discutir os problemas imediatos, mas são precisas respostas de forma mais abrangente para a doença. Ou seja, se não tivermos uma estratégia nacional que integre esta dimensão mais abrangente - o que, no fundo, significa fazermos o que pede a OMS, que é: colocar a Saúde em todas as políticas - teremos um grande problema no futuro. Isto porque a inovação em Saúde é cada vez mais cara e ,se não prevenirmos o crescimento da Diabetes na nossa população, não há nenhum mecanismo que torne o Sistema de Saúde sustentável. O que quero dizer é que teremos um futuro em que a Diabetes será um dos fatores que contribuirá, seguramente, para um Serviço de Saúde insustentável, tendo os profissionais de tomar decisões sobre quem tem acesso às melhores terapêuticas - não haverá capacidade para dar acesso à inovação a todos os doentes. É preciso que todos percebamos que a Diabetes é uma das maiores ameaças à sustentabilidade económica de um país, já não estamos a falar só do SNS.
Porque há cada vez mais doentes?
Porque há mais doentes e porque estes doentes ficam cada vez mais doentes, devido às complicações, e mais incapacitados para trabalhar, arrastando outros para esta realidade, que são os seus cuidadores. É preciso mudar o panorama da Diabetes - se não houver mudanças, o sistema não será sustentável.
Mas pode ser feita alguma coisa no imediato, como rastreios, por exemplo?
Pode fazer-se o rastreio para a Diabetes Tipo 1 e para a Diabetes Tipo 2, bem como usar outras ferramentas para se detetar quem tem risco de vir a ter diabetes. Em relação à Diabetes Tipo 2, que afeta 95% dos doentes, há formas simples de se fazer rastreio, uma delas é um questionário a todos os portugueses, que avaliaria o risco existente e a necessidade de fazer análises ao sangue ou de acompanhamento em consulta para mudança de estilos de vida. Este questionário não existe de forma generalizada. Em relação à Diabetes Tipo 1, até há poucos anos achávamos que não tínhamos forma de fazer rastreio, porque a doença aparecia de forma rápida nas camadas mais jovens. Hoje em dia já é possível. Portugal até vai ser um dos países-pilotos onde será testado um projeto de rastreio em crianças sem história familiar de Diabetes. Portanto, este rastreio à Diabetes vai ser feito e vai começar muito rapidamente, mas depois é preciso que este projeto se estenda, porque aqui temos alguma janela de esperança para que a Diabetes Tipo 1 deixe de ser uma doença inevitável, mas uma doença na qual ainda se pode atuar.
Há alguma esperança, mas o caminho não vai ser fácil. Quer deixar alguma mensagem?
É preciso abrir a tal discussão. Como podemos adaptar a prestação de cuidados à inovação tecnológica? Há aspetos que têm de ser discutidos em comum entre os prestadores de cuidados e os políticos para haver uma melhor organização do sistema, porque o Sistema de Saúde que temos está organizado de forma clássica, numa dimensão muito compartimentada e nós precisamos que os Serviços de Saúde respondam às necessidades das pessoas e não que as pessoas respondam à maneira como o serviço está organizado.