‘Não adianta ser bom só para o governo. Educação é dever do Estado’, diz reitor sobre não aderir ao novo Fies
No meio da semana passada, nove de 15 universidades comunitárias do Rio Grande do Sul anunciaram que não vão aderir ao novo Fies (Fundo de Financiamento Estudantil) para o próximo ano letivo. Integrantes do Comung (Consórcio das Universidades Comunitárias Gaúchas), elas confirmaram o descontentamento com as novas regras do programa, sancionadas em janeiro por Michel Temer (PMDB).
Entre as críticas estão a falta de diálogo do Ministério da Educação com as instituições, falta de clareza nas novas regras, insegurança para as instituições perante a possibilidade de inadimplência e a mudança do tempo de carência para o próprio aluno. Agora, estudante que teve acesso ao financiamento, terá de começar a pagá-lo apenas 30 dias depois de formado.
Presidente da Comung, o reitor da Universidade de Passo Fundo (UPF), José Carlos Carles de Souza, conversou com o Sul21 para esclarecer o que fez algumas das maiores universidades do Estado tomarem essa decisão e o que ela pode representar para a política de educação como um todo.
Sul21: O que levou as universidades a tomarem a decisão de não aderir ao que vem sendo chamado de “novo Fies”?
José Carlos Carles de Souza: Desde o momento que o governo começou a noticiar que criaria um novo programa de financiamento estudantil, um novo Fies, as instituições comunitárias passaram a contribuir com informações, tentando acompanhar o processo de criação deste novo programa. Mas, todas as reivindicações que foram apresentadas não foram consideradas. Esse é o primeiro aspecto. O segundo aspecto é que o novo Fies cria, para as instituições de ensino superior, bem como para os alunos, uma redução de possibilidade de manter suas atividades. Quer seja o aluno pagando a mensalidade, ou as próprias instituições no custeio das suas atividades. Por exemplo, aumentou o valor de participação das instituições de ensino, para poder ter um aluno Fies, podendo chegar aí num mínimo de 30% de redução. O que significa dizer que, se eu contratar uma mensalidade de R$ 100, eu já sei que vou receber R$ 70. Além deste custo operacional que o Ministério da Educação está repassando, ele também exige que as instituições atuem como fiadores do aluno. Então, se o aluno se tornar inadimplente, junto à instituição financeira onde ele contratar o financiamento, quem vai responder por isso é a instituição de ensino. Então, veja, o risco das instituições foi extremamente ampliado e sem limites. Isso é importante compreender: as instituições não têm nenhuma gestão no processo. A gestão é toda do MEC.
Sul21: Antes tinham?
José Carlos: Não tinham, mas antes tinha limites. O que eu quero dizer com isso, para que compreendamos bem: o aluno que aparecer aqui na Universidade de Passo Fundo, por exemplo, disser que quer fazer matrícula pelo Fies, eu sou obrigado a aceitar porque eu aderi ao programa. A partir desse momento, é uma relação do aluno com o programa como um todo, com o Ministério da Educação e nós não temos mais nenhuma ingerência. Significa dizer que nós não temos como controlar a adesão do aluno ao processo. Como um dos aspectos do novo Fies, que mudou, é quando o aluno começa a devolver os valores – 30 dias depois da formatura – acabou o prazo de carência, isso é prejuízo para o aluno. Os recursos têm um custo para o aluno, têm encargos financeiros que oneram o aluno. Diante dessa insegurança de normas e regras do novo Fies, um conjunto de instituições de ensino entendeu que, ou se clareia e se especifa mais o financiamento, ou não vamos aderir. Foi o que fizemos. No caso da UPF, por exemplo, quando em 2015 o Fies fraquejou e deixou os alunos na mão, a universidade criou um programa próprio de auxílio estudantil, o PAE/UPF e atendeu ao aluno cobrando metade da universidade e deixando o restante para receber um ano depois de formado. É muito mais interessante para o aluno este e outro plano, do que ficar recebendo da burocracia que é o sistema Fies.
Sul21: Quais foram algumas das reivindicações que as instituições apresentaram e não foram acolhidas?
José Carlos: Eram várias. Por exemplo, a forma burocrática do aluno participar do processo. As instituições simplesmente realizam a matrícula e depois não têm mais ingerência nenhuma. O aluno, às vezes, procura a instituição porque está faltando um documento ou algo, não podemos fazer nada. Nós queríamos que ficasse um processo muito mais simples, muito mais fácil, mas que se mantivesse a carência para o aluno devolver o que ele tomou de financiamento. Isso acabou. Era 12 meses, passou para 18 meses e agora caiu para 30 dias. 30 dias depois de formado, ele já tem que começar a pagar. Isso não é concebível, ainda mais no mercado que a gente vem presenciando recessivo para empregos, principalmente para os recém-formados. O que remete para as instituições de ensino uma responsabilidade imediata, porque o aluno terminou a faculdade e tem que começar a pagar, não tem condições, começa a inadimplir a sua obrigação. São algumas considerações que nós apresentamos, mas que o governo não acolheu.
Não adianta ser bom para o governo, se olharmos para a Constituição, educação é dever do Estado. E o Estado quer, simplesmente, repassar às instituições de ensino uma participação que evidentemente não temos. Somos parceiros de ações de governo, sempre estivemos com ele. Temos alunos ProUni, temos um programa de bolsas da Fundação UPF, mas não podemos assumir uma responsabilidade que é do governo, que inviabiliza até a situação financeira das instituições. Como o aluno que está no Fies antigo pode migrar para o Fies novo, desobrigando seus fiadores e transferindo essa responsabilidade para a instituição, tu compreende o que isso poderia acarretar. A instituição ficaria fiadora de tudo aquilo que tem de crédito para receber, isso inviabiliza. O que nós precisaríamos é ter clareza [quanto às regras], mas não temos essa segurança. Então, devido à falta de segurança, de clareza, de ter um interlocutor inteligente no Ministério da Educação, que poderia responder a todos esses questionamentos, é que nós entendemos que, neste momento, nós não vamos aderir. Talvez, se mudar a regra, se as coisas ficarem melhor esclarecidas, a UPF e todas as outras instituições podem mudar de posição e aderir ao programa, dentro daquilo que é factível.
Sul21: Como ficará o acesso ao ensino, para alunos de baixa renda, por exemplo, com todas essas questões?
José Carlos: Nós vamos continuar com o ProUni. O aluno de baixa renda pode optar por ter 50% ou 100% do programa.
Sul21: Mesmo para alunos de classe média, o financiamento também era a única maneira viável de frequentar uma universidade. Como fica para eles?
José Carlos: Concordo. Eles vão ter uma dificuldade. Usando o exemplo de Passo Fundo de novo, eles poderão aderir aos programas da instituição, mas não ao Fies.
Sul21: Ou seja, eles passam a depender do que cada universidade terá para oferecer?
José Carlos: Verdade. Das opções que as universidades criaram, obrigadas pela inconsistência do projeto Fies, para podermos avançar neste cenário. Um dado interessante é que a meta 12 do Plano Nacional de Educação prega, exatamente, a inserção cada vez maior de alunos no ensino superior. Só que, para esta política pública ser viável, ela deve vir acompanhada do financiamento estudantil. Em nenhum momento diz que quem tem que financiar são as instituições privadas, mesmo as comunitárias. O governo conhece a meta, que precisa ampliar, é tudo o que desejamos, porque precisamos de alunos, mas esbarramos exatamente nisso, na falta de clareza na política de educação que está colocada à disposição. Esta publicidade que tem sido veiculada pelo governo federal, falando do Fies, ela não é todo verdadeira.
Sul21: Qual era a importância do Fies para a manutenção financeira das universidades?
José Carlos: Claro, vou te dar um exemplo focando na Universidade de Passo Fundo. Nós vínhamos de 2014 crescendo, aumentando o número de alunos porque o governo garantia o Fies. Em 2015, fizemos um excelente vestibular, porque dissemos que o Fies seria pré-aprovado em todos os cursos, para facilitar a vida dos alunos. Tivemos mais de 1,7 mil pedidos de Fies, não ganhamos 200. O que fazer com esses alunos que não foram contemplados? Porque em janeiro de 2015, se reduziu drasticamente as vagas do Fies, tínhamos alunos na expectativa de ter o financiamento, porque não tinham condições de pagar. Como alternativa criamos o PAE/UPF, seguramos aquele semestre para os alunos que não podiam pagar, sem cobrar, para manter o aluno na casa. Nós temos o maior interesse do aluno estar conosco, agora, não podemos expor o aluno a uma situação que, lá na frente, vai ficar ruim para ele. Se o aluno terminou o curso de Direito, ele vai fazer um concurso público, se ele não pagar o seu Fies (porque ele não está empregado e não tem condições), ele não poderá assumir o cargo, caso for aprovado, porque ele é inadimplente. É um sutileza da questão, que não podemos concordar. Tem uma série de questões aí, que nós apontamos ao Ministério e que não teve resultado nenhum. O que nós queremos é um programa – pode ser o que estava vigente até agora – mas que fossem mantidas as regras como estavam.
Sul21: As universidades que decidiram não aderir, elas podem ser afetadas de alguma forma?
José Carlos: Não. A adesão ao Fies é uma ação livre de cada instituição. Por que as puramente privadas, que visam lucro, que nós chamamos de mercantis, aderiram maciçamente ao Fies anterior? Porque viram ali a oportunidade de ter o aluno com elas, com ganhos cada vez mais crescentes, porque a instituição ficava credora do governo. O governo enxergou isso e mudou. Talvez, para as empresas privadas, essa regra pudesse ser verdadeira. Agora, para as instituições comunitárias, como é o nosso caso, que temos uma relação de receita e despesa muito apertada, que tem uma gestão muito austera para não trabalhar no vermelho, mas da forma como está nós perderíamos a possibilidade de fazer essa gestão. Não teríamos controle do que pode redundar no futuro de déficit para a instituição.
Sul21: Reitores de universidades públicas e institutos federais têm pontuado, desde o ano passado, a dificuldade para fechar as contas e como os cortes têm afetado os campi. O que mudou para as privadas?
José Carlos: As privadas-privadas jogam com o mercado. Elas não recebem verbas do governo federal e o financiamento é para o aluno. Através da Capes tem uma política nacional de inserção de professores e aluno com bolsas, mas isso depende e varia muito de instituição para instituição.
Sul21: Mas falando de forma mais global, sobre a situação das universidades em meio às políticas de cortes.
José Carlos: Isso pode redundar num retrocesso, numa diminuição no número de alunos. Nós já sofremos isso. Na UPF, nós já tivemos em 2014 perto de 22 mil alunos, hoje estamos perto de 18,5 mil. Significa dizer que diminuímos o número de alunos porque, de 2014 para cá, a dificuldade imposta pelo governo federal, para que o aluno frequentasse a universidade. Essa foi a tônica, se olhar a PUCRS, a Unisinos, a UCS, houve um encolhimento no número de alunos, que é contraditório com o que diz a meta 12. Ela diz, o que podemos potencializar para trazer mais alunos? Só que o MEC não chama as instituições para discutir essas regras.
Sul21: O senhor diria que esse cenário preocupa as instituições?
José Carlos: De certo modo preocupa porque, se não tiver um incentivo do governo federal, num programa de financiamento factível, bom para o aluno e para a instituição, cada vez vamos ter um número menor de alunos no ensino superior. Imagina assim, o aluno que está trabalhando e ganha R$ 1,5 mil por mês, será que ele consegue pagar sua mensalidade? Não consegue, ele precisa do Fies. Como ele vai fazer? Ele consegue pagar uma parte ou pode não pagar nada e pagar tudo depois de formado. Mas se pensarmos que ele não consegue, que ele depende do ganho da família, isso se torna inviável. Nós defendemos uma verba mais substancial para o ensino no Brasil. E falo de ensino no modo geral – básico, médio, superior, técnico – todas as áreas. Agora, no superior, se o governo não fomentar, para que as grandes universidades possam oferecer cursos para quem não tem recursos, vamos diminuir. Só não perdemos mais alunos, porque o PAE/UPF ajudou a manter alunos na casa. Por ato próprio de gestão da universidade, se não fosse isso teríamos perdido algo como 50% dos alunos. Isso redundar em demitir professores, funcionários, diminuir estrutura. Não fizemos nada disso, só alguns ajustes necessários, para ajudar a manter.
Sul21: O que diferencia uma universidade comunitária de uma universidade privada que visa lucro?
José Carlos: Uma instituição comunitária tem compromissos muito além da sala de aula, compromissos com a comunidade. O exemplo da UPF, ela foi criada a partir do desejo de cidadãos da comunidade e sempre manteve esse vínculo. Ela presta uma série de serviços, muitos deles a custo zero, usando a experiência e expertise dos professores, a participação dos alunos, para contribuir naquilo que a comunidade tem interesse. Uma instituição comunitária se preocupa não apenas em oferecer um curso de pós-graduação porque vai ter rentabilidade. Nós oferecemos porque o mercado precisa daquele profissional. Dotamos a instituição para que, quem passar por lá, possa dar respostas à comunidade.
Sul21: Outra questão que vem sendo debatida no âmbito do ensino superior, por entidades de classe, são demissões em massa e ampliação de disciplinas em modalidade de ensino à distância que vem ocorrendo em algumas faculdades. Como o senhor analisa essa questão?
José Carlos: Acho prejudicial, porque as instituições com essas características apenas olham para o resultado. Tem que dar resultado positivo, em outras palavras, um lucro cada vez maior. Nós nunca observamos o lucro, nós definimos nosso orçamento e seguimos com critério na relação receita e despesa. Observamos o valor das mensalidades, porque precisamos do valor delas para manter a instituição. Nunca visando lucro, sempre resultado para não fechar no vermelho. Nós temos um custo, trabalhamos com qualidade, como é uma preocupação básica das universidades comunitárias, e definimos aí o padrão de reajuste de mensalidade que ajude a cobrir todas essas despesas. E, eventualmente, para construção de algum laboratório, porque temos dificuldades de conseguir doações para isso. Tivemos aqui a aventura de conseguir construir um Parque Científico e Tecnológico, para o qual tivemos um aporte do governo do Estado, veio uma verba do governo federal em equipamentos, mas de tudo o que foi investido, 25% foi de recursos próprios da universidade.
Sul21: O que pode ser feito, neste momento, para que se garanta a qualidade do ensino superior no Brasil?
José Carlos: Precisamos que os gestores da área do ensino, reitores, vice-reitores, professores, coordenadores de curso tenham percepção efetiva do que estão fazendo para conduzir bem seus cursos. Para onde esse curso está direcionando seus profissionais? Para onde os está levando, para que eles possam crescer? Quando a gente verifica, por exemplo, que grandes conglomerados econômicos começam a querer fazer formação com seus profissionais, eles fazem dentro de uma linha daquilo que eles precisam, quase uma linha de fabricação. Quando falo de uma universidade fazendo formação de profissionais , nós temos todo um conjunto: ele vai sair com uma formação técnica, mas vai ter também formação humanística, vai ter uma formação para a vida muito mais qualificada. Temos que investir nisso, em instituições que se preocupem em formar um sujeito, muito mais do que em formar um profissional. A formação profissional é importante, mas a formação do sujeito tem que ser prioritária.
Foto:Gelsoli Casagrande/Divulgação