"O que distingue uma época econômica de
outra é menos o que se produziu do
que a forma de o produzir"
(Karl Marx, em 1867)
O manifesto lançado por algumas fundações ligadas a partidos políticos de esquerda, intitulado Unidade para reconstruir o Brasil, não repercutiu como gostariam os seus signatários por dois prosaicos fatores:
a) a chamada esquerda fisiológica perdeu credibilidade, pois quando esteve no poder político renegou até mesmo alguns poucos postulados pró-povo contidos no referido manifesto, pelo simples fato de que é a dinâmica do capital quem governa sob o capitalismo. A esquerda, uma vez no poder do Estado, nada mais é do que gerenciadora das ordens ditatoriais na dinâmica do capital. Não há capital bonzinho, humanizado, como quer o manifesto. A busca do poder burguês pela esquerda não passa de fisiologismo oportunista, que sempre termina por decepcionar o povo com suas promessas idílicas de bem-estar social, nunca concretizadas;
b) porque as propostas contidas no referido manifesto são tão velhas e equivocadas nas suas substâncias que se tornaram minimamente incapazes de gerar entusiasmo, mesmo diante da escalada da miséria social provocada pela falência capitalista mundo afora e seus estados regulamentadores e opressores.
Mas, analisemos, de per se, os eixos fundamentais das proposições ali defendidas, até como forma de proporcionar à luta emancipatória, verdadeiramente anticapitalista, um norte referencial consistente.
Sobre a crise econômica capitalista
e as proposições de saída
O manifesto, ainda que denuncie o empobrecimento dos países periféricos e da semiperiferia do capitalismo, em nenhum momento admite que a crise do capitalismo mundial se deve à própria inconsistência contraditória de sua dinâmica destrutiva e autodestrutiva, apegando-se, apenas, a fatores políticos, imperialistas e financeiros como causas de sua existência.
Assim, admite implicitamente que uma boa política estatal, keynesiana, estatizante, pode mudar a face da dinâmica do capital, tornando-o pró-povo. É conceito recorrente no manifesto, e constante de vários parágrafos como ponto de honra, a retomada do desenvolvimento econômico.
Acaso os seus signatários admitem a horizontalidade equânime do desenvolvimento econômico mundial, e, implicitamente, que o roubo capitalista originário da extração de mais-valia pode ser administrado de modo a proporcionar bem estar coletivo sustentável e uniforme?
Acaso os signatários do manifesto, todos impolutos representantes de fundações e partidos políticos autointitulados de esquerda, desconhecem a essência da inevitável segregação social capitalista, sem a qual não se forma e nem se acumula o capital?
Acaso desconhecem o fato de que o mundo capitalista e seu pretendido desenvolvimento econômico é formado por pequenas ilhas de prosperidades rodeadas por oceanos de pobreza?
Acaso desconhecem o fato de que o mundo capitalista e seu pretendido desenvolvimento econômico é formado por pequenas ilhas de prosperidades rodeadas por oceanos de pobreza?
Ou será que se satisfazem com a quimera de um desenvolvimento econômico nacionalista, patriótico, capaz de melhorar nacionalmente a miséria dos seus empobrecidos, mas incapaz de proporcionar uma melhora social para o restante das populações mundiais?
Será que, mesmo intitulando-se representantes de esquerda, estão propondo apenas uma agenda desenvolvimentista nacional com o fito de nos integrarmos melhor ao primeiro mundo capitalista e, assim, gozarmos as delícias do capital, sempre acessível aos ricos desses países mas incapaz de proporcionar bem-estar social à maioria da população?
Acaso querem um Brasil rico, ainda que os demais países latino-americanos mergulhem na pobreza?
Será que os postulados desenvolvimentistas e nacionalistas não conflitam com a visão transnacional que deve estar na base da emancipação humana?
Quando se lê a ênfase em propostas de desenvolvimento econômico a partir de um manifesto assinado por fundações e partidos de esquerda, com o objetivo proclamado de unidade de reconstrução do Brasil, observa-se não só o desconhecimento da essência das categorias capitalistas e seu caráter segregacionista e anti-povo, mas, também, de um erro de análise conjuntural, porque a reconstrução somente é possível após ter havido em algum tempo uma construção.
Aí pergunta-se em que período, dos mais de 500 anos transcorridos desde que aqui aportaram os portugueses, o Brasil foi construído do ponto de vista da existência mínima de igualdade e riqueza horizontais?
A ignorância consciente ou inconsciente dos postulados contidos no manifesto denota a dificuldade dos seus signatários (presos a uma estrutura política decadente, estatal, político-partidária democrática, e desejosos de reabilitá-la) em admitir a falência de todas as categorias capitalistas, aí incluída a política da qual fazem parte. Temem a negação daquilo que os sustenta, ainda que seja um fator de perpetuação da miséria coletiva.
Constata-se, também, a retomada de velhos e ultrapassados conceitos marxistas do movimento operário, exotérico, possibilitando que se compreenda mais claramente porque, com tais artefatos políticos, as primeiras experiências políticas socialistas, havidas há cem anos da Rússia e há quase setenta na China, derivaram, sem nenhum tiro, para economias de mercado, nas quais a busca pelo desenvolvimento econômico capitalista é a pedra de toque.
Sobre a restauração do Estado democrático
de direito e da democracia
É de causar acabrunhamento a um leitor mais abalizado a análise do conteúdo do manifesto na sua proposição de retomada do Eestado democrático de direito.
Está ali nitidamente colocada a ideia absurda de que o Estado democrático de direito usou de suas prerrogativas para derrogar o próprio Estado democrático de direito. Daí a proposição de sua retomada.
O Estado democrático de direito não só esteve e está em pleno vigor, como é essencialmente anti-democrático (se quisermos emprestar ao termo isonomia popular de vontade); está, como disse ePresidente Temerário, funcionando sobranceiramente; e apenas usou as suas armas para desmoralizar a esquerda em sua capacidade de prover as demandas sociais e a economia, ainda que a mesma tenha conciliado com os donos do PIB de modo corrupto e vergonhosamente submisso.
Aliás é contraditório quando o manifesto diz ser antiparlamentarista, por saber que os parlamentares capitalistas são sempre maioria em suas cadeiras, mas pretende compor esse mesmo parlamento que lhe puxou a tapete tão logo as condições político-econômicas capitalistas se demonstrarem factíveis.
Por Dalton Rosado |
(continua)