Um jurista contra a intolerância religiosa

27 de outubro de 2017 995

“No Brasil, a intolerância religiosa atinge ateus e agnósticos, adventistas do sétimo dia, fieis do santo daime, judeus e muçulmanos (especialmente em função da associação desse segmento ao terrorismo mundial), mas é certo que a intolerância contra as religiões afro-brasileiras é a mais sistêmica, cruel e violenta”, afirma o advogado Hédio Silva Júnior, ex-secretário de Justiça do estado de São Paulo.

Para o advogado, há um fosso que separa legislação e direitos previstos na Constituição Federal do cotidiano de impunidade e violações que aflige os povos de matriz africana em várias regiões do País. Além de uma desinformação generalizada entre os adeptos sobre esses direitos e um grande número de cidadãos que sofrem violência e não denunciam.

Entre as razões elencadas pelo advogado para o aumento do índice de denúncias de intolerância religiosa, podemos destacar a covarde e sistemática omissão do Estado brasileiro, que silencia diante do uso diário do rádio e da tevê para a veiculação do discurso de ódio religioso, o crescimento do número de denominações neopentecostais, algumas minúsculas e com abrangência local, mas com o mesmo discurso baseado no ódio religioso, o aumento da influência e do poder político dos segmentos neopentecostais em Brasília, nos governos estaduais e prefeituras, e o crescimento da consciência de direitos entre o povo do axé, que faz com que as vítimas se sintam encorajadas a denunciar.

Como explica Silva Júnior, a iniciativa de processar o Brasil na Corte Interamericana de Direitos Humanos surge pela necessidade de mobilizar a opinião pública internacional e disponibilizar para os povos de matriz africana mais uma ferramenta na luta em defesa da honra e da dignidade da religião.

Na segunda-feira 30, uma petição será endereçada à Corte Interamericana, que possui competência para julgar os estados como parte pela violação de direitos humanos. “São dois os objetivos principais: requerer uma audiência pública na corte para que o Estado brasileiro dê explicações sobre a grave e crescente intolerância que vitima fieis de religiões de matriz afro em todo País e instaurar um processo visando obter uma sentença que condene o Brasil a indenizar as vítimas de intolerância religiosa, a aperfeiçoar o aparato normativo, a dotar de recursos financeiros e implementar políticas públicas de prevenção ao discurso de ódio religioso”, esclarece.

A ação deverá ser impetrada ainda no mês de novembro e há grande chance de que haja mais de um processo. Centenas de entidades religiosas afro-brasileiras e ONGs de vários estados integram esse esforço, incluindo as Casas Matrizes da Bahia, o Axé Batistini, a União de Tendas de Umbanda e Candomblé do Brasil, o Superior Órgão de Umbanda, o Coletivo de Entidades Negras, o CENARAB. “Trata-se de uma iniciativa aberta a todos que queiram fortalecer a luta contra a intolerância religiosa”, completa.

A petição aponta as principais violações de direitos humanos dos fieis das religiões afro-brasileiras resultantes do discurso de ódio, como ataques físicos, depredações de templos, terrorismo, tortura, ameaças, ofensas verbais, dano ao patrimônio cultural, constrangimentos e humilhações de crianças em escolas públicas, recusa de funcionários públicos em atender candomblecistas, sentenças judiciais que negam o status de religião ao candomblé, umbanda, batuque e demais segmentos de matriz africana. Pede-se não apenas indenização às vítimas, mas especialmente políticas públicas e programas preventivos, bem como aperfeiçoamento das leis e orçamento.

O jurista acrescenta que a intolerância contra as religiões afro-brasileiras vem tendo um crescimento vertiginoso e lamentavelmente vai continuar aumentando no próximo período, principalmente os ataques a templos e a adeptos. “Não há outro caminho a não ser a união, a ação comum, a soma de esforços, a construção de uma pauta de reivindicações nacional capaz de servir de plataforma para a ação coletiva e de consolidar os diversos segmentos na defesa dos direitos do povo de axé”, explica.

O advogado avalia que o Judiciário também tem sido uma via importante, surpreendendo com pronunciamentos bastante favoráveis à liberdade de crença e de culto. Contudo, orienta que as vítimas de intolerância religiosa devem registrar no momento do fato o máximo de detalhes possível: gravar em áudio, vídeo, anotar placas de veículos, chamar testemunhas, manter a calma.

“É preciso denunciar. Em São Paulo, por exemplo, temos a Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância, que muito me orgulho de ter ajudado a criar quando fui secretário de justiça do Estado”, salienta.

As religiões afro-brasileiras são aquelas que mais sofrem com a intolerância religiosa porque, além de reunir milhões de indivíduos, constituindo, numericamente, um grande segmento, esbarram na questão do racismo. Possuem enormes dificuldades para ações unificadas e qualificadas, para dialogar com o poder público e construir uma agenda comum nacional que unifique e mobilize os diversos setores em torno de uma mesma plataforma.

“O silêncio alimenta e estimula a violência. Por outro lado, quanto mais denúncias, quanto mais processos, mais o problema tornar-se visível e aumenta a consciência e mobilização social para seu enfrentamento”, finaliza.

Na segunda-feira 30, a partir das 19 horas, na Câmara Municipal de São Paulo, acontecerá o lançamento público da petição para processar o Brasil nos tribunais internacionais por intolerância religiosa. O evento promete mobilizar um grande número de sacerdotes e adeptos das religiões de matriz africana, além de lideranças do movimento negro e da luta contra o racismo. Todos os interessados em construir um país mais justo e democrático poderão assinar a petição e participar desta iniciativa.